Sim, mas há uma encrenca por trás disso
Felipe Lange
Neste dia 1 º de abril (e não é mentira!), saiu uma pesquisa elaborada pelo PoderData, do Poder360, envolvendo o novo programa do auxílio-emergencial. Segundo a pesquisa, 82 % das pessoas pesquisadas afirmaram que R$ 250 é um valor muito baixo. Peço que veja a matéria inteira, antes de continuar no artigo.
O novo benefício governamental ficará dentro das seguintes categorias:
- R$ 150: para quem mora sozinho;
- R$ 250: para famílias com mais de um integrante;
- R$ 375: para mulheres chefes de família (únicas provedoras);
Serão quatro parcelas em um desses valores acima, as quais irão custar um previsto de R$ 44 bilhões, atingindo um número menor de pessoas (serão 45,6 milhões de pessoas).
Afinal, esse é um valor justo? Baixo? Vamos deixar de lado nesse texto a questão ética, atentando apenas à questão econômica.
Vamos descobrir agora!
Primeiro, vamos analisar o preço histórico da cesta básica. A sua metodologia está detalhada neste texto. Neste caso, o preço é o praticado na cidade de São Paulo. Eis o gráfico abaixo:
Preço histórico da cesta básica, mensal, janeiro de 1998 até fevereiro de 2021.
Basta dizer que, com o menor valor do auxílio, R$ 150, você comprava uma cesta básica em 01/10/2002. Hoje, não compra nem mesmo a metade. Com os R$ 250, você comprava uma cesta básica inteira em 01/09/2010 e, com os R$ 375, você comprava uma cesta em 01/01/2015. O valor maior paga, ao menos neste mês de fevereiro de 2021, algo como 58,64 % de uma cesta (com a carestia, a cesta básica deve aumentar novamente de preço). Vale notar que os preços se mantiveram mais estáveis entre 2003 e 2007 (o que explica a reeleição do Lula e o "sucesso" do Bolsa Família, quando o real se manteve forte em relação às principais moedas do mundo).
Para piorar, além de o auxílio estar sendo ofertado em valores nominais menores, o poder de compra caiu. No primeiro dia de Bolsonaro no poder, um dólar americano custava R$ 3,88. Neste dia 6 de abril, custa aproximados R$ 5,59 (em 26/02/2021, data do último dia registrado da taxa cambial do mês de fevereiro, estava em R$ 5,60). Entre as datas de 01/01/2019 e 06/04/2021, o real desvalorizou 30,59 % em relação ao dólar americano.
Quando o auxílio de R$ 600 começou a ser pago (em 9 de abril de 2020), um dólar custava R$ 5,10 aproximados (tínhamos também o valor de R$ 1200 para mães provedoras da família; tempos depois o programa receberia uma extensão com valores menores), ou seja, o auxílio tinha o poder de compra de US$ 117,64 (e os R$ 1200, US$ 235,29). De 9 de abril de 2020 até 26 de fevereiro de 2021, então, o real se desvalorizou em 10,52 %. Para manter o mesmo poder de compra em dólares, portanto, o auxílio teria de ser de R$ 600 para R$ 629,94 (e os R$ 1200 teriam de ser em R$ 1259,88). Aqui comparamos o câmbio com o preço da cesta básica do mês de fevereiro de 2021, por enquanto o mais atual.
Esse auxílio novo começou a ser pago neste dia 6 de abril, terça-feira. Vamos agora comparar até essa data.
À essa taxa cambial de R$ 5,59, R$ 150 valeriam aproximados US$ 26,83; R$ 250, US$ 44,72 e; R$ 375, US$ 67,08. De 9 de abril de 2020 até 6 de abril de 2021, o real desvalorizou 8,67 % em relação ao dólar.
Só para manter o poder de compra do dia 09/04/2020 até o dia 06/04/2021 (em relação ao dólar), o auxílio teria de receber um reajuste de 9,54 %.
Então, não apenas a cesta básica encareceu, mas também a nossa moeda doméstica perdeu poder de compra de maneira considerável.
Nesse período de tempo, aliás, o real brasileiro foi uma das poucas moedas que se desvalorizou em relação ao dólar americano, como mostra este gráfico abaixo:
Gráfico que vai entre os dias 09/04/2020 e 06/04/2021.
No gráfico acima, podemos ver o desempenho das seguintes moedas em relação ao dólar americano: real brasileiro (BRL), rublo russo (RUB), renminbi chinês (CNY), peso colombiano (COP), peso chileno (CLP) e peso mexicano (MXN). O DXY refere-se ao Índice DXY, que mede a força do dólar perante às principais moedas do mundo. Assim, podemos concluir que, ao passo que o dólar encareceu em relação à moeda brasileira e à moeda russa, ele barateou em relação às outras moedas exibidas no gráfico. E pior: apesar de o dólar ter se desvalorizado em relação às principais moedas do planeta, o real também desvalorizou em relação ao dólar americano. Em suma, a culpa não é do dólar e sim do real, que há algum tempo tem apresentado um desempenho vergonhoso no planeta. Mesmo com a acertada (e recente) decisão do COPOM de elevar os juros, os juros reais brasileiros continuam negativos e menores do que os de países como Japão, Dinamarca, Estados Unidos e Suíça, conforme demonstra postagem abaixo (tuíte original disponível aqui):
Na prática, o Brasil, um país sem grau de investimento, oferece juros menos atrativos do que de países mais estáveis e amigáveis ao investimento. Por que você investiria?
Isso foi culpa dos lockdowns? Economia a gente vê depois?
Quem acompanha este blog há algum tempo sabe que há inúmeros artigos e textos demonstrando de que os lockdowns destroem economias inteiras, além de serem contra as liberdades civis mais básicas.
Evidente que, de alguma maneira, os bloqueios influenciaram no setor alimentício. A primeira influência é que, como vários setores foram fechados, então a demanda por bens mais básicos aumenta (seja para estocagem, seja por pânico, entre outras coisas). Com isso, há uma tendência de alta nos preços. A segunda influência é pelo assistencialismo. Como há uma necessidade artificial por medidas assistencialistas (causada pela proibição de várias atividades econômicas), o dinheiro fornecido para programas assistenciais é utilizado para bens mais primordiais, algo que pesa especialmente entre os mais pobres, os mais prejudicados pelas medidas de trancamento.
Só que acaba aí. Os supermercados não apenas nunca pararam de funcionar (porque sabemos que políticos e burocratas também não realizam fotossíntese; de onde vem os alimentos entregues por motoristas de aplicativo?), como também toda a cadeia do setor alimentício aumentou seu faturamento em 12,8 % em 2020. Apesar de algumas previsões catastrofistas e sem embasamento de que faltaria alimentos (o que de fato aconteceria em um cenário de hiperinflação e/ou controle de preços), o setor continuou funcionando, tanto é que houve um aumento nas exportações agrícolas. A safra aumentou também em 2020.
Para deixar mais claro, vamos usar a empiria e comparar o Brasil com outros países que impuseram lockdowns tão severos (ou mais severos) do que aqui.
Vamos comparar com o Peru, um dos países com as medidas restritivas mais longevas do mundo?
Eis o gráfico:
Índice de preços no setor alimentício, março de 2016 a fevereiro de 2021, Peru e Brasil, acumulado dos últimos doze meses.
Vamos comparar com os vizinhos, independentemente das medidas restritivas?
Índice de preços no setor alimentício, março de 2016 a fevereiro de 2021, Brasil e outros vizinhos, acumulado dos últimos doze meses.
Incluí na lista o Uruguai, país que adotou medidas menos restritivas com relação ao coronavírus. O país sofreu uma forte desvalorização cambial, o que explica a sua carestia mais forte. Só que, no momento, a carestia no setor alimentício local já deu uma desacelerada e já está menor do que no Brasil. Fato notório é o Equador com a sua dolarização, assim como a Bolívia e o seu arranjo (por enquanto) atrelado. Desde o início do papel flutuante, o Brasil vive seu período de maior inflação de preços nos alimentos, não sendo superado apenas pelo período após a eleição de Lula, quando houve uma forte desvalorização na moeda.
No continente sul-americano, perdemos apenas para Venezuela, Suriname e Argentina, conforme demonstra gráfico abaixo:
Índice de preços no setor alimentício, março de 2020 até fevereiro de 2021, Brasil e outros vizinhos, acumulado dos últimos doze meses.
Como a Venezuela sofreu (e ainda sofre) de uma enorme hiperinflação, colocar o gráfico dos últimos cinco anos geraria grandes distorções (e o caso argentino não engloba períodos anteriores a dezembro de 2017). Por ora, ainda não saíram os dados venezuelanos e surinamenses de fevereiro.
Com isso, empiria e teoria comprovam de que os trancamentos por si só não influenciam tanto nos índices de preços do setor alimentício, quanto algumas pessoas pensam.
O que causou essa carestia tão forte? Agro é pop?
A carestia no setor alimentício brasileiro começaria a incomodar logo no fim de 2019, quando o Banco Central do Brasil iniciaria uma série de reduções nos juros, em uma clara política pombalista. Isso, em conjunto com as eleições argentinas, soltura do Lula, distúrbios na América Latina e com as claras falas de Paulo Guedes apontando para um real fraco, começou a alimentar a perda do poder de compra do real. No início de 2020, antes mesmo do pânico mundial com relação ao coronavírus, Guedes continuaria com suas falas em prol de um real fraco e o banco central estava direcionado a continuar sua política desenvolvimentista de juros baixos. Com as distorções causadas pelo choque de oferta e de demanda, assim como pela abrupta queda da demanda de vários serviços e bens, o IPCA chegaria a níveis anormalmente baixos no começo daquele ano. Em 2020, a meta de inflação fora de 4 %, sendo o teto de 5,5 % e o piso mínimo de 2,5 %. Sim, isso mesmo: se a inflação caísse para menos de 2,5 % anuais, o BCB teria de atuar na expansão monetária (e dar explicações para a imprensa), para a inflação estar no mínimo a 2,5 % ao ano. Faz sentido combater deflação de preços? Não para nós, seguidores da Escola Austríaca. Para 2021, a centro da meta passa a ser de 3,75 %, sendo o teto de 5,25 % e o piso mínimo de 2,25 %. É um valor bastante alto, principalmente levando-se em conta de que o México, desde 2003, possui uma meta de inflação de 3 % (sendo até 1 ponto percentual para mais ou para menos; Chile também) e o Peru tem uma meta de 2 % (sendo até 1 ponto percentual para mais ou para menos; o mesmo para a Costa do Marfim).
Os investidores estrangeiros e as pessoas do mercado financeiro já haviam entendido de que a equipe econômica nada faria para "proteger" o real das desvalorizações. Para piorar a encrenca, sob influência direta do Ministério da Economia, o banco central passaria a fazer uma espécie de política fiscal, alegadamente de que os juros menores da SELIC seriam usados para reduzir o custo da dívida governamental (o que irei demonstrar posteriormente os resultados). Com a chamada PEC do Orçamento de Guerra, o banco central poderia passar a comprar mais ativos em posse do sistema financeiro, influenciando também na qualidade da moeda, já que agora o BCB passaria a deter mais títulos privados, os quais causaram uma queda na qualidade dos ativos em posse do banco central, com um critério menos rigoroso para comprar esses títulos. A grosso modo, o nosso banco central adotaria alguns elementos da política monetária do Federal Reserve System (o banco central dos Estados Unidos), mas possuindo uma moeda menos negociada no mundo do que o peso mexicano e o rublo russo.
Com a Lei Nº 13.892, o auxílio emergencial também entraria no esquema. Com dezenas de milhões de pessoas beneficiadas, o dinheiro passaria a entrar diretamente na economia. O assistencialismo em si seria mais eficiente, já que o dinheiro cairia diretamente na conta da pessoa (através de um aplicativo de celular), caso ela não fosse se arriscar em filas enormes (comumente sob um sol quente e com máscara). Passa a entrar parte do conceito de "assistencialismo eficiente", defendido por Milton Friedman, longe dos sistemas estatais lentos, ineficientes e burocráticos de outrora, o que certamente desincentivaria a procura por medidas assistenciais, talvez até criando mais pressão para que os governadores e prefeitos desistissem das medidas restritivas. As regiões Norte e Nordeste foram as mais beneficiadas com o auxílio governamental (uma discussão sobre as causas do maior índice de pobreza dessas regiões é algo interessante e que merece um artigo à parte).
Com tudo isso, o M1, a soma de todas as cédulas e moedas metálicas em poder do público mais todos os depósitos à vista, explodiu, conforme mostra gráfico abaixo:
M1, julho de 1994 a dezembro de 2020.
Foi o maior aumento vivenciado na história do real.
Em apenas um ano, tal agregado monetário subiu 50 %. Ou seja, houve um maciço aumento de quantidade de dinheiro na economia real, o que causou um aumento na demanda, sem ocorrer um equivalente aumento na oferta. Um verdadeiro disparo digno de uma bombarda turca.
Para compararmos a outros países similares, basta dizer que, por exemplo, o M1 no México subiu 17,6 %. Eis o gráfico abaixo comparando a subida do M1 dos vizinhos do Brasil:
M1, janeiro de 2020 a janeiro de 2021, países vizinhos selecionados.
Pode-se dizer de que o único país da lista a superar o Brasil fora o Chile e, de perto, o Peru quase nos passou. Mas como assim? Afinal, o Chile é um importador de alimentos e não tem um poderio a ponto de exportar alimentos para o mundo todo. Além de o peso chileno ser uma moeda com histórico mais sólido (e existir desde 1975), o país continua sendo uma das economias mais livres do planeta, o que então tende a arrefecer pressões inflacionárias nos preços (e as suas commodities ainda estão historicamente baratas). Tal fenômeno também ocorreu nos Estados Unidos, já que o seu M1 subiu absurdos 69,75 % entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021 (essa moleza deles não existe aqui). Com isso, a oferta e variedade de bens e serviços oferecida é muito maior do que em economias menos livres. O Peru, além de ser uma economia mais livre, ainda possui o privilégio de poder usar o dólar americano junto com a moeda doméstica, desde 2000. Nesse mesmo período fomos também superados pela Argentina e pela Venezuela, que tiveram seus M1 aumentados em 72,69 % e 1219,18 %, respectivamente (não há dados de Suriname).
Além do problema do M1, a desvalorização cambial no Brasil causou um aumento nos custos de produção. Afinal, a quantidade de unidades monetárias necessária para adquirir os mesmos bens e serviços aumentou.
Índice de preços ao produtor, variação percentual e no acumulado dos últimos doze meses, janeiro de 1999 a janeiro de 2021.
Tal aumento nos índices de preços ao produtor só não foi pior do que no fim de 1999 e início de 2003, no atual regime flutuante (no regime atrelado, aqui; houve uma grande disparidade no gráfico porque estávamos saindo de uma forte hiperinflação). Esses índices mensuram os custos de produção, envolvendo os custos de bens e serviços oferecidos pelos produtores no mercado atacadista, ou seja, em início da cadeia de produção.
Isso é justamente fruto da moeda doente: todo o setor produtivo passa a vivenciar um aumento nos custos para produção, principalmente o industrial. Não apenas viagens ao exterior ou uma simples compra de algum produto da China ficam mais onerosas, mas todas as áreas da economia são afetadas. Você não come dólar (apesar que, caso isso ocorresse, isso geraria uma deflação monetária), mas você consome commodities. O seu veículo consome etanol, gasolina ou óleo diesel. Etanol e petróleo são commodities cotadas em dólar. O ônibus consome óleo diesel (ou, caso for elétrico ou híbrido, consome energia que sofre influência do IGP-M, a qual será mencionada logo adiante), que é petróleo. O avião consome querosene, que é uma commodity também cotada em dólar. Com isso, passagens aéreas, de ônibus e afins ficam mais caras. O seu medicamento utiliza também insumos importados. Você talvez more em alguma residência alugada. Para ler esse artigo, consome energia elétrica. Os preços do aluguel e da energia elétrica levam em conta o IGP-M, índice que sofre influência dos preços das matérias-primas e do dólar (por isso o índice disparou e os aluguéis ficaram bem mais caros).
Para piorar, com a desvalorização cambial, as exportações de commodities (produzidas em estágios iniciais da cadeia produtiva) passaram a ser mais lucrativas para o mercado estrangeiro (o que já havia acontecido em 2015), pois as receitas em reais aumentam, assim como há uma demanda maior pelos dólares pelos exportadores do setor, para tentar se proteger da desvalorização da moeda doméstica. Ao mesmo tempo, a aquisição desses bens pelos estrangeiros fica mais barata, já que menos dólares são necessários para adquiri-los. Entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021, os valores das exportações de café cresceram em 30,5 %, 40,3 % em milho, 32,8 % em açúcar cru e 28,3 % em farelo de soja (dados disponíveis aqui). O aumento nas exportações foi tamanho que isso gerou uma menor oferta interna, a ponto de o Bolsonaro ter que zerar tarifas de milho e soja. Recentemente, a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) pediu ao governo para que as tarifas de importação de milho sejam novamente zeradas (já que a isenção de tarifas foi temporária). Com essa menor oferta de soja (pela sua menor oferta causada por suas maiores exportações), o preço do óleo de soja disparou (assim como o preço da carne). Inúmeros grãos são utilizados para formular rações para bovinos. Mesmo que você seja vegano, lembre-se: você comeu alguma commodity. Até o óleo diesel foi afetado. Detalhe: o Brasil alimenta pelo menos 800 milhões de pessoas no mundo, coisa que não acontece com os nossos vizinhos, assim como não ocorre com o México. Os efeitos da desvalorização cambial são tão poderosos que eles afetam até países que são grandes produtores e exportadores de alimentos.
De novo: o Brasil foi um dos países da região a vivenciar o maior aumento dos custos de produção.
Índice de preços ao produtor, variação percentual e no acumulado dos últimos doze meses, março de 2011 a janeiro de 2021, países selecionados da região.
Somente o Uruguai se aproximou da gente, mas o país sofreu um recente arrefecimento no aumento nos custos de produção. Os dados da Bolívia para esse tipo de medição não estão disponíveis, mas há de supor de que eles estejam também em melhor patamar do que a gente (visto que a moeda deles se manteve mais estável). Peru não possui os dados em variação percentual no site utilizado acima para fazer o gráfico, mas você pode checar o seu valor bruto aqui. Os valores percentuais de Colômbia e Paraguai estão disponíveis no Trading Economics, os quais podem ser checados aqui e aqui. Na América do Sul, só devemos ser superados por Argentina, Venezuela e Suriname.
A encrenca do endividamento e a SELIC
O governo Temer deu início a um trabalho bastante ingrato. A economia brasileira passava a retomar a passos lentos, a dívida bruta começava a cair, assim como os déficits. Os bancos estatais também foram domados, o que consequentemente ajudou a controlar o aumento da dívida governamental. Bolsonaro continuou parte desse trabalho em 2019, apesar de alguns equívocos na política monetária, os quais causaram um retardo na recuperação da economia.
Só que em 2020, esse trabalho foi praticamente perdido: o governo brasileiro foi o governo latino-americano que mais gastou com os chamados estímulos fiscais, que nada mais são medidas keynesianas e que envolvem uma mistura de endividamento e criação de dinheiro (isso já aconteceu nos Estados Unidos após a crise de 2008). Entre os países listados da América Latina, o Brasil foi o campeão: o governo gastou mais de 8 % do PIB com essas medidas. O segundo colocado, o Peru, gastou 6 % do PIB e o Chile, pouco menos de 6 % (o governo mexicano não gastou nem 2 % do PIB; agora sabemos porque ele foi comparado à Margaret Thatcher).
Com isso, o déficit nominal explodiu e foi de 5,9 % do PIB, em 2019, para 13,7 % do PIB (primário de 9,49 % do PIB), um aumento de 140,35 %. A dívida bruta do governo foi de 74,3 %, em 2019, para 89,3 % do PIB em 2020, portanto tendo um aumento percentual de 20,18 %. Apesar da brutal redução da taxa de juros SELIC (o que supostamente reduziria o fardo sobre as despesas com a dívida), o decréscimo nas despesas com os juros foi ínfimo: o gasto com juros foi de R$ 312,427 bilhões em 2020, enquanto em 2019 foi de R$ 367,282 bilhões, portanto uma economia de aproximados R$ 54,85 bilhões. Isso não paga nem metade do orçamento do Ministério da Saúde (e muito menos o que foi gasto com auxílio emergencial). Além disso, apenas uma parte dos títulos governamentais é atrelada à SELIC (em 2020, foi de 25,3 %). Ainda há os títulos atrelados ao IPCA: se a SELIC cai e o IPCA aumenta (que é o que está acontecendo agora), as despesas para pagar esses títulos aumentam, já que o IPCA subiu. Os títulos prefixados também entram nessa, sofrendo variação positiva no percentual com a expectativa futura de inflação pelos investidores. Outra coisa não dita é que, sempre que esses juros caem, os preços dos títulos sobem. Então isso na prática é uma rentabilidade para esses detentores de títulos. O "rentismo", de fato, nunca acabou no Brasil. Visto tudo isso, quem foram os reais ganhadores dessa SELIC baixíssima?
Agora, para compararmos em déficit nominal (% do PIB), basta dizer que, no mesmo ano de 2020, a Alemanha ficou com déficit de 4,8 %, a Índia com 9,5 %, Israel com 11,7 %, Malásia com 3,2 % e Paquistão com 8,1 %. Entre nossos vizinhos (dos dados que já saíram), a Colômbia ficou com déficit de 7,8 %.
Estamos perto do Líbano, que fechou 2020 com um déficit de 16,5 % (apesar de ter dado um calote na dívida externa; o país entrou em hiperinflação em questão de poucos meses). O Canadá também fechou o ano em negativo: - 15,9 %. O governo mexicano, por outro lado, fez companhia com o alemão entre os mais conservadores fiscalmente no ano passado: o déficit nominal ficou em 2,9 % (até superávit primário conseguiram, embora de ínfimos 0,1 % do PIB), uma subida de 1,2 ponto percentual em relação a 2019. Dos países mencionados acima, apenas Paquistão não tem grau de investimento.
Lembrando: o Brasil não tem superávit primário desde 2014. Existe a previsão de que o Brasil vá ter superávit primário somente no ano de 2026 ou 2027.
Mas por que esse valor baixo do auxílio?
O estado brasileiro é uma verdadeira criatura titânica.
Segundo Caldeira (2017)¹, a carga tributária brasileira no fim da década de 1920 era de 6 % do PIB. Mal havia universidades mantidas pelo governo. O máximo que se almejava em matéria de previdência era a inclusão de algumas categorias de funcionários no sistema previdenciário. Naquele tempo, grande parte das receitas tributárias vinha das tarifas de importação e exportação. O imposto de renda, criado sob bastante resistência à época, mal tinha nascido e atingia apenas uma pequena parcela da população. No governo de Washington Luís, o último antes do varguismo, havia somente sete ministérios. Entretanto, como todo bom estado, o cíclope se tornou, ao longo das décadas, um titã. O financiamento, que antes vinha em grande parte por mera impressão de dinheiro (a chamada senhoriagem, o que resultava em inflações de preços continuamente altas, comumente passando de 20 % ao ano), foi trocado por mais impostos e emissão de dívidas, o que foi consolidado após o Plano Real, quando a hiperinflação foi finalmente domada e o governo federal teve de socorrer vários governos estaduais falidos.
Hoje a carga tributária é de 33,1 % do PIB, entre as maiores dos países latino-americanos, perdendo apenas para Barbados e Cuba. Por outro lado, o nosso vizinho mais rico, o Chile, possui uma carga tributária de 21,1 % do PIB e, mais longe da gente, o México, se contenta com uma carga tributária de 16,1 % do PIB, ou quase a metade. Para piorar, o sistema tributário brasileiro, composto de 92 tributos diferentes, é o mais complexo do mundo.
Mesmo tendo coletado R$ 2,449 trilhões de tributos em 2020, o governo precisa constantemente se endividar para manter toda a sua máquina burocrática (basta afirmar que, apenas no ano passado, tivemos um déficit de 13,7 % do PIB). Em 2020, o governo se endividou em aproximadamente R$ 1,01 trilhão (apesar de ter feito congelamento nos salários do funcionalismo, o que foi um acerto). Apenas com o auxílio emergencial do ano passado, o governo federal gastou R$ 293,78 bilhões.
Isso significa que, graças aos "rentistas", é que o governo continua sendo capaz de custear tudo isso, inclusive os programas assistencialistas e os socorros dados aos governos estaduais. Pessoas físicas, instituições financeiras e fundos de investimento emprestaram esse dinheiro para o governo. Sem os "rentistas", não haveria dinheiro para custear uma semana de auxílio emergencial.
Para conseguir manter todo o sistema em funcionamento, o governo precisa tributar muito. Só que, como a tributação tem um limite natural, então o governo precisa contrair dívidas sob constância. Por sermos pouco produtivos (hoje somos menos produtivos do que os mexicanos) e ainda pobres, somos menos capazes de pagar por uma carga tributária tão grande do que dinamarqueses, suecos e franceses. Com um histórico repleto de calotes e várias trocas de moedas por planos econômicos malucos, poucos são os investidores estrangeiros nos títulos do Tesouro. Ao passo que 25,62 % dos credores do governo americano eram estrangeiros (nesse mês de janeiro de 2021), o Brasil não tem a mesma moleza: menos de 15 % dos credores do governo são estrangeiros.
Com esse histórico e sem um grau de investimento (e com um risco-país mais alto do que países como Colômbia, México e Peru), o Brasil precisa cobrar juros altos para atrair investidores. Entretanto, dentro das medidas recentes que levaram a juros reais negativos e com a maior expectativa de inflação futura, o Brasil vive em uma diferença abrupta entre os juros da SELIC e os juros de longo prazo, entre as maiores no mundo. A taxa de juros de longo prazo no Brasil está quase em 10 %, das maiores dos países emergentes (no México essa taxa de juros é de 6,67 %). Dado o fato de que o Brasil escolheu ter uma moeda nacional própria (ao invés de tomar o caminho de países como Panamá e Equador) e essa moeda reflete a qualidade do governo, esse maior risco precisa ser refletido em sua taxa SELIC, para tornar a moeda atrativa tanto para investidores estrangeiros quanto para domésticos. Para ter uma moeda doméstica forte, o governo precisa pagar por isso. Moedas de papéis flutuantes em países desenvolvidos e amigáveis aos investimentos oscilam e normalmente não causam grandes problemas para investidores. Em países como o Brasil, a moeda é capaz de afundar em pouquíssimo tempo por causa de um noticiário.
Esse ser titânico, o governo federal, hoje tornou-se componente de 22 ministérios, dezenas e dezenas de estatais, subsídios bilionários para grandes corporações, sessenta e três universidades federais, grandes gastos previdenciários, milhões de funcionários governamentais com altos salários, entre tantas outras coisas.
Ao passo que o governo federal brasileiro gastou o equivalente a 20,28 % do PIB (excluindo gastos com dívida) em 2019, o governo mexicano gastou 11,35 %, ou seja, quase a metade. Os gastos são quase como os franceses, mas somos pobres e com menor capacidade de gerar riqueza.
Quisemos experimentar uma social-democracia escandinava tendo uma produtividade menor do que a de um mexicano e tendo um país com menos liberdade econômica do que o Egito.
E então voltamos ao auxílio: o governo está quebrado. Com tantos gastos obrigatórios tendo de ser mantidos graças à Constituição Federal de 1988 e diante de um risco fiscal em face às incertezas sobre algum programa de austeridade do governo Bolsonaro (já que a chamada PEC Emergencial foi desidratada ao máximo e houve várias concessões para variadas categorias do funcionalismo estatal), com restrições sobre reduções salariais no funcionalismo, não há espaço para bancar grandes programas assistenciais (lembre-se que em 2019 o governo teve que pedir crédito suplementar de quase R$ 250 bilhões para bancar inúmeros gastos), especialmente levando em conta de que os dependentes de assistencialismo não possuem poder político como os funcionários governamentais de altos cargos.
Não acredita? Basta ver esse mapa abaixo:
Mapa mostrando as medidas governamentais relacionadas à provisão de renda (você pode checar aqui).
Note que, entre os países que fornecem os programas assistenciais mais fartos (ou seja, cobrindo mais de 50 % do salário perdido), a imensa maioria é composta de países mais ricos, produtivos e livres economicamente. Isso explica o motivo de muitos dos países mais pobres do planeta não terem embarcado em programas assistenciais (como em parte considerável da África). As regiões onde a população, por ser mais rica e produtiva, é capaz de gerar uma maior riqueza, possui maior capacidade de ser mais tributada pelos governos para custear grandes programas assistenciais. Nos EUA, Joe Biden estendeu os benefícios assistencialistas iniciados por Trump e um fenômeno bizarro, o qual ocorria no ano passado, continuou a acontecer: muitos americanos não querem voltar para o trabalho (e falta mão de obra para muitos negócios), porque eles estão recebendo mais dinheiro ficando em casa do que exercendo um ofício.
A social-democracia é um arranjo que funciona por mais tempo em países ricos. Na década de 1970, esses países já estavam entre os mais ricos do mundo. A Suécia experimentou esse arranjo por um certo tempo, mas logo depois teve de fazer reformas em sua parte fiscal. O governo japonês, por exemplo, hoje com uma grande dívida, ainda consegue sustentar esse fardo pelos principais motivos: a sua população, além de ser produtiva, rica e poupadora, ainda possui uma das moedas mais sólidas do mundo (o que implica em ganhos para quem investe nos títulos do governo japonês) e o governo nipônico nunca caloteou a sua dívida, tendo pago até as suas dívidas contraídas durante a Segunda Guerra Mundial. O iene japonês é uma moeda que existe desde a Restauração Meiji. Enquanto os indivíduos acreditarem que o governo será capaz de honrar suas dívidas, essa dívida continuará sendo rolada (o que acontece, ao mesmo por enquanto, tanto com o governo japonês quanto com o americano).
Com todos esses fatores agravantes, o endividamento do governo federal brasileiro terá um limite. Haverá um momento em que essa conta terá que ser paga, seja via inflação monetária, seja por via de mais impostos, seja por mais emissões de dívidas, seja por privatizações. Ou tudo isso junto. De qualquer forma, seremos um caso de país que envelheceu antes de se enriquecer.
Outro fato é que um crescimento econômico também é capaz de amenizar o custo da dívida. Se a economia está crescendo, automaticamente mais impostos estão sendo coletados pelo governo, sem necessidade de se aumentar a carga tributária (os EUA foram uma das economias desenvolvidas que mais cresceram nos últimos anos). Nunca houve hiperinflação nesses mais de trezentos anos do dólar americano.
Só que o Brasil, além de ter histórico de calotes, hiperinflação e de fracas instituições, não vivencia um forte crescimento econômico desde 2010. Ou seja, uma dívida alta para nós é muito mais arriscada.
Então, por incrível que pareça, Jair Bolsonaro acertou quando disse de que o governo federal está quebrado. Entretanto, não adianta fugir de suas responsabilidades: ele poderia muito bem fechar mais ministérios, assim como agências reguladoras, secretarias e atacar os super-salários do funcionalismo estatal, além de fazer coisas como reduzir os salários e benefícios de seus assessores, entre outras coisas. Obrador já está fazendo isso, apesar de sofrer várias pressões.
O que mais fazer e conclusões
Evidentemente, se os lockdowns fossem eliminados de vez (como já aconteceu em alguns estados americanos neste ano), não apenas as pessoas estariam ganhando mais do que sob assistencialismo, mas também começariam a ajudar a toda a economia do País a se recuperar dos estragos profundos causados. A própria necessidade de tamanho endividamento governamental para socorrer governos locais (e desempregados e pessoas sem renda) ao menos seria diminuída. Promover a caridade privada é importantíssimo, também (e estamos vendo isso mesmo diante de tantas adversidades).
A apresentação da MP do Ambiente de Negócios já foi um outro passo positivo no governo Bolsonaro. Tornando-se lei e não sendo desidratada (ou mesmo sendo aprimorada), já é um novo passo importante (além de aprovação de leis como a que estende o faturamento máximo para MEIs). É importante comemorarmos quando há um breve suspiro de liberdade.
Os bloqueios impostos a vários setores econômicos evidentemente criaram problemas para toda a cadeia produtiva (mesmo as que ficaram em funcionamento), mas a carestia atual foi causada majoritariamente pela forte desvalorização cambial e pela absurda expansão monetária ocorrida no ano passado. A popularidade do Bolsonaro certamente explodiria, se a busca por uma moeda forte tivesse sido o caminho desde 2019.
Imagem de gigieffe por Pixabay.
¹ Para mais detalhes, ler o livro "História da riqueza do Brasil: Cinco séculos de governos, costumes e pessoas", de Jorge Caldeira.
Recomendações de leitura:
Comments