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Vinte anos de dolarização: por que o Equador?

Atualizado: 2 de nov. de 2021

Felipe Lange


Nesse ano o Equador completou 20 anos de dolarização. Mas não apenas os equatorianos podem usar a moeda americana. Além do pequenino país costeiro, temos também El Salvador, Panamá e Peru como exemplos de países que adotaram a moeda americana no continente latino-americano (oficialmente os peruanos possuem o sol peruano, mas eles podem também usar o dólar). O Haiti oficialmente usa o gourde haitiano e que é atrelado ao dólar, mas o dólar americano também pode ser utilizado. Atualmente, mais de 60 países ao redor do mundo atrelam a moeda nacional ao dólar (o câmbio é atrelado) ou fixam em relação ao dólar (o câmbio é fixo).


A América Latina é uma região de muitas similaridades e diferenças. Nas similaridades, o Equador é um país carregador de fracas instituições, língua espanhola, instabilidade política, escândalos de corrupção e inflação. Hoje é ainda um dos países mais pobres da América do Sul. Por incrível que pareça, apesar da continuamente alta inflação, o Equador nunca teve uma hiperinflação como o Brasil e a Argentina. Os surtos de hiperinflação normalmente ficavam aos 100 % e logo caíam, ainda que ainda estivessem longe de um nível de inflação suíço. A Colômbia teve um histórico ainda melhor, apesar de décadas de guerra civil. Isso mostra que um Banco Central brincando de TMM é mais destrutivo do que guerras contra narcotraficantes.


Interessante notar que o sucre equatoriano (moeda corrente do país) nasceu em 1884, quando ainda vivíamos sob o padrão-ouro. Assim, por décadas a moeda nada mais era um equivalente em peso de ouro, assim como foi com grande parte do mundo.


Assim como muitos outros regimes da região, os políticos do Equador, durante a década de 70, aproveitaram o dólar mundialmente fraco e o petróleo caro (pois o país é um grande exportador de petróleo) para captar empréstimos externos (aumentando a dívida externa) e aumentar as despesas governamentais (como subsídios para energia elétrica e no aumento no número de funcionários no funcionalismo estatal), o que iria cobrar um preço caro no futuro.


Sob o arranjo de Bretton Woods, nominalmente o sucre estava em um regime fixo em relação ao dólar, embora a taxa de câmbio real estivesse apontando em uma valorização do sucre em relação ao dólar.



Câmbio atrelado?


Em 1983, o sucre equatoriano ficaria dentro de um regime de desvalorizações controladas e induzidas pelo próprio governo, sob uma verdadeira geringonça que certamente teve inspiração na política cambial durante o regime militar brasileiro. Isso, entretanto, não resolveu o problema de inflação cronicamente alta. Aliás, desde o começo da década de 80, a taxa de inflação só foi piorando, com eventuais surtos de hiperinflação, como o gráfico abaixo demonstra:


Taxa de inflação acumulada dos últimos 12 meses, 1980 ao início de 2000



O fato que certamente agravou foi a chamada crise da dívida externa na década de 80, o que foi ocasionada pela pancada nos juros feita pelo então presidente do Banco Central Americano, Paul Volcker, quando os juros americanos ficaram em 20 %. Isso fez com que o dólar americano se fortalecesse mundialmente e então os investimentos nos países da América Latina ficassem menos atrativos. A dívida externa, contraída em dólares, ficou cada vez mais cara de ser paga pelos governos latino-americanos, o que foi piorada pela constante desvalorização cambial. Governos perderam a fonte para financiar as suas dívidas, então muitos recorreram à simples monetização da dívida. Consequentemente, calotes na dívida foram dados. O Brasil foi um deles.


Equador, entretanto, não teve um destino tão parecido assim, embora tenha sofrido com a queda do preço internacional do petróleo (quando o dólar fica mais forte, o petróleo fica mais barato em dólares), dado o fato de o país ser altamente dependente do óleo exportado. Os juros do país tiveram que ser aumentados, subindo de 8 % para 15 % já no fim de 1982. No fim de 1983, a dívida externa do país já estava em 43 % do PIB [1]. Em 1987, o governo interromperia o serviço da dívida de bancos estrangeiros comerciais (tecnicamente uma moratória).


A economia equatoriana ficou estagnada durante toda a década de 80, o que também implicou na estagnação do padrão de vida dos equatorianos, já que o PIB per capita quase não se alterou nesse período.


Para piorar, o país é também extremamente vulnerável às forças da natureza: ciclos de seca, excesso de chuvas, terremotos e vulcões. Tudo isso afeta os preços das commodities, tornando o país mais vulnerável a choques externos. O El Niño atinge fortemente a região, já que ele altera a produtividade da fauna pesqueira e causa enchentes, dado o fato de que o Equador também depende de exportações de pescados. É certo que o Japão é bastante resiliente para com tantas condições adversas, mas o Equador sofre em intensidade maior, pelo fato de possuir pouco capital acumulado e carecer de um ambiente propício aos investimentos privados.


Em 1992, o câmbio passou a ser atrelado e o governo controlou o orçamento, e a dívida governamental ficou controlada até 1997. Isso atraiu confiança dos investidores, mas mesmo assim o país continuava hostil aos investimentos e a produtividade também ficaria estagnada. Nessa época, o país já tinha uma baixa pontuação de liberdade econômica, conforme demonstra o gráfico abaixo:


Liberdade econômica de alguns países latino-americanos, 1950 a 2000.



Algumas pequenas privatizações foram feitas (com redução no número de funcionários estatais), assim como desburocratização no setor bancário, com o qual agora os bancos agora poderiam operar em dólares e fazer negócios com equatorianos por meio de agências off-shore. Isso resultou em redução nos déficits e na dívida bruta. Isso causou um respeitável aumento nas reservas internacionais. Além disso, em 1992 o Banco Central ficaria proibido de emprestar dinheiro diretamente para o governo e, em 1998, ele passaria a ser independente.


Sem muitas mudanças e com o país estagnado, as coisas começariam a piorar em 1998.



Tinha que ser você de novo


A instabilidade política equatoriana é tão, mas tão alta, que faz o ambiente político brasileiro parecer um ambiente político de padrões suíços. E isso não foi diferente com a década de 90.


Em 1995, o Equador provocaria uma guerra contra o Peru, pois havia quebrado um acordo de paz firmado em 1941, ao ter invadido território peruano próximo ao Rio Cenepa. Foi um conflito de curta duração (durou pouco mais de um mês) e resolvido anos depois com um acordo intermediado por Brasil, Estados Unidos, Argentina e Chile, mas que desgastou politicamente. Os déficits mais que dobraram, indo de 1,23 % em 1995 para 2,77 % no ano seguinte (e os gastos militares explodiram). Para piorar, o Equador também sofreria interferência da Crise do México de 1994.


Os déficits do governo começaram a explodir, conforme gráfico abaixo:


Orçamento do governo, gráfico que vai de 1983 a 1999



Além disso, mais um problema de seca e seguidas instabilidades políticas (com renúncia de político) espantaram os investidores. As reservas internacionais, que em maio de 1995 estavam em pouco mais de US$ 1,8 bilhão, caíram para menos de US$ 1,6 bilhão em julho do ano seguinte. Para conter essa fuga, pancadas na taxa de juros foram feitas.


Taxa de juros, segundo semestre de 1993 até 01/01/1997. Em países instáveis e de câmbio atrelado, as taxas de juros precisam ser bastante altas para atrair capitais estrangeiros.



Mais crises


Em julho de 1997 começaria a famosa Crise Asiática, que varreu todos os países emergentes e que estavam usando o regime de câmbio atrelado ao dólar. Equador, que também atrelava o sucre ao dólar americano, também sofreu com a fuga de capitais. Ataques especulativos foram feitos em todos os países nesse arranjo cambial, inclusive o Equador. Com isso, as reservas internacionais voltaram a cair após setembro de 1997.


Além do problema do El Niño, o país sofreu com a queda no preço internacional do petróleo (que chegou a custar US$ 11 o barril em novembro de 1998), com a Crise Financeira da Rússia de 1998 e com a Crise do Brasil de 1999. Todos esses foram eventos que provocaram fuga para o dólar.


Uma crise bancária começaria a surgir naquele mesmo ano, quando o pequeno banco Solbanco simplesmente faliu em julho de 1998. Isso teve um efeito cascata e afetou todo o sistema bancário, já que desencadeou em corridas aos outros bancos. Os pequenos e médios depositantes do banco fechado foram afetados, perdendo a poupança que tinham. No mês seguinte, um outro banco médio entraria em bancarrota, depois de ter sido incapaz de honrar suas obrigações e um grande banco pediu auxílio ao Banco Central do Equador. O Banco de Prestamos também foi mais um dos bancos falidos. Deste banco, somente vinte e um depositantes conseguiram o dinheiro da garantia de depósito. Ao longo das semanas, os pagamentos se materializaram para outros depositantes, mas que já estavam sendo corroídos pela inflação. Nem todos conseguiram seus pagamentos de volta. O Filanbanco, o maior banco em ativos da época, também pediu suporte do banco central. Toda essa crise acabou gerando mais instabilidade no país, já que esses socorros estavam interferindo também na própria taxa de câmbio, a qual teve a sua banda cambial aumentada (maior faixa de tolerância com desvalorização ou valorização da moeda). A gasolina, cujo preço também recebe subsídios do governo e é dominada pela estatal Empresa Estatal Petróleos del Ecuador (conhecida como "Petroecuador"), também ficou mais cara. A demanda por dólares ficou cada vez maior. O que certamente piorou é que a base monetária foi expandida para que os bancos recebessem os socorros por parte do Banco Central do Ecuador, aumentando a contradição entre a base monetária e as reservas internacionais (que é o que costuma acontecer em regimes de câmbio atrelado onde são feitas política monetária e cambial).


Em agosto de 1998, ocorreria as eleições presidenciais. Quem foi eleito foi o senhor de nome Jorge Jamil Mahuad Witt (o homem da foto de abertura), ganhando do adversário Álvaro Noboa por pouca margem em pontos percentuais.


Com toda essa confusão, em fevereiro de 1999, o sucre deixaria de ser câmbio atrelado, e passaria a flutuar. Ou melhor, passaria a afundar. Isso porque, nas quatro semanas seguintes, o sucre desvalorizaria 30 % em relação ao dólar. No fim de 1998 um dólar valia 6825 sucres; no fim do ano seguinte um dólar já custava 20.243 sucres.


A dívida explodiu, indo para valores pornográficos para um país com pouca credibilidade internacional:

Dívida governamental em relação ao PIB, 1990 a 1999



Diante de tamanha baderna, a inflação explodiu, saindo dos 30% no começo de 1998 até 60% no começo de 2000:


Inflação de preços em acumulado de 12 meses, janeiro de 1995 até janeiro de 2000



O que agravou o problema é o fato de que, além de o Banco Central do Equador ter o poder de salvar bancos falidos, havia garantias estatais para depósitos [2]. Naquele mesmo ano de 1999, os bancos passariam a poder fazer empréstimos para si próprios e haveria um imposto de 1 % em qualquer transação bancária para tentar restringir os saques (agora já sabemos de onde saiu a CPMF). A confiança no sistema bancário foi embora e as pessoas passaram a sacar em massa. Para piorar, o próprio governo simplesmente congelou todos os depósitos, aumentou impostos e restringiu saques, o que obviamente não apenas não combateu a inflação, como gerou ainda mais insatisfação popular. Felizmente, esse congelamento foi gradativamente sendo eliminado e, com isso, entretanto, os saques em massa acabaram quebrando vários bancos, já que os bancos ficaram descapitalizados graças ao sistema de reservas fracionárias. Em setembro do mesmo ano, o governo anunciou o calote na dívida externa. Toda essa bagunça fez com que o PIB real tivesse caído 7,3 % e a taxa de desemprego dobrasse. Muitos bancos faliram e uma parte do sistema bancário foi ainda socorrida pelo governo. O sistema bancário colapsou. A popularidade de Jamil Mahuad, que estava em 60 % em outubro de 1998, caiu para 6 % em janeiro de 2000.



Por que o Equador adotou o dólar?


É um quase estereótipo de que países da América Latina odeiem qualquer tipo de resquício relembrando os Estados Unidos (mesmo que seja algo bom). Parece inimaginável um país latino-americano adotar então, de repente, o dólar americano. No Brasil, mesmo com a crise de 1999, nunca se pensou em dolarização ou mesmo em uma adoção de Agência de Conversão (Currency Board).


A primeira razão para isso é que a dolarização começou de maneira gradativa e espontânea entre a própria população. Os próprios residentes fugiam do sucre e iam para o dólar. Com isso, na década de 90, uma parcela cada vez maior do M1 (que é o agregado monetário que soma cédulas e moedas em poder do público mais depósitos à vista no sistema bancário) passou a ser denominada em dólares. Isso foi algo inexistente no Brasil, já que por aqui tínhamos a chamada indexação, que era a correção automática após a inflação.


A segunda razão é que tivemos um ajudante importante: o economista Steve Hanke. Steve Hanke ficou conhecido em propôr Currency Board como solução rápida e sem traumas para combater a hiperinflação de países de economia bastante bagunçada (que fariam o Brasil parecer a Suíça), já tendo sugerido o arranjo para os governos argentino (infelizmente o arranjo foi deturpado pelo governo argentino), búlgaro (cujo arranjo se mantém até hoje), estoniano (mantendo um Currency Board até 2011, quando adotou o euro), lituano (também seguindo o mesmo caminho da Estônia), indonésio (mas que não foi em frente, pois o ditador Suharto não teve coragem de enfrentar as pressões contrárias vindas dos Estados Unidos e do FMI; hoje o câmbio é flutuante) e montenegrino (que hoje usa o euro).


Com o Equador, Hanke não foi diferente: a diferença é que ele sugeriu a adoção direta do dólar. Em 1995, ele publicou, em conjunto com o Kurt Schuler, o livro denominado "Juntas Monetarias para países en desarrollo: Dinero, inflación y estabilidad económica" (em Português: "Conselhos monetários para países em desenvolvimento: Dinheiro, inflação e estabilidade econômica") [3], em língua espanhola e que circulou por todo o Equador. No ano seguinte ele viajou para o país, para encorajar que o então candidato a presidente Abdalá Bucaram adotasse a moeda. Bucaram pensou na ideia de um Currency Board durante a campanha eleitoral. Como ele acabou saindo do cargo antes de terminar o mandato (alegadamente por problemas mentais e insanidade), Hanke então sugeriu a dolarização para membros do governo equatoriano. A ideia, entretanto, ficou esquecida por anos.


Com o novo presidente eleito, o próprio Jamil Mahuad - depois de tantas trapalhadas econômicas e monetárias -, começara a pensar nessa ideia de implantar o dólar. E assim foi feito: no dia 9 de janeiro de 2000, ele anunciou que adotaria o dólar como moeda corrente e abandonaria o sucre equatoriano. Naquele dia à partir da taxa de câmbio no regime flutuante, então foi estabelecido que 25 mil sucres valeriam um dólar.


Como era esperado de um país latino-americano, sindicatos e a organização indígena esquerdista Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador se opuseram à implantação da moeda (do mesmo jeito que hoje há gente que é favorável à recriação dos drachmae na Grécia). Elaboraram protestos e foram ferozmente contra a única medida sensata tomada pelo presidente. Para piorar, alguns militares também se rebelaram contra o presidente, liderados pelo Lucio Gutiérrez. E então, no dia 21 de janeiro daquele mesmo ano, Jamil Mahuad é deposto e o vice Gustavo Noboa tomou o seu lugar. O golpe de estado falhou, os responsáveis foram presos e o Lucio Gutiérrez foi expulso do Exército. O Banco Central do Equador continuou existindo, mas ele teria as seguintes funções: emitir moedas com denominação menor que um dólar e algumas regulações. Era só isso. Acabaria a política cambial, ficando a política monetária algo bastante restritivo.


Os burocratas do Banco Central se demitiram e Jamil havia ameaçado demitir quem se opusesse à dolarização.


Em março daquele mesmo ano, com o novo presidente no cargo, seria aprovada a chamada Ley Trolebus no Congresso, referente à dolarização e demais reformas.


Para pegarmos o contexto histórico, peguemos as principais críticas da época à dolarização:


> "Mahuad se converteu para vice-presidente do Equador, visto que com a dolarização, em minha opinião, o presidente passou a ser o diretor do Banco Central Americano [que seria o Alan Greenspan]"

Rodrigo Borja, ex-presidente do Equador


> "As autoridades também consideram que a dolarização e a conversibilidade não são esquemas viáveis no momento atual."

Declaração do Banco Central do Equador, 5 de janeiro de 2000


> "O problema é que a economia equatoriana não tem os fundamentos necessários para concluir a dolarização com sucesso."

Federico Kaune, economista sênior, Goldman Sachs. Washington Post, 11 de janeiro de 2000


> "Agora o governo [do Equador] foi para o outro extremo e está tentando restaurar a confiança na moeda, abolindo-a. Os observadores dizem que isso pode funcionar se for acompanhado por uma ampla reforma doméstica - o que é um pouco como dizer que você pode matar alguém com feitiçaria se também lhe der bastante arsênico. " Paul Krugman, New York Times, 19 de janeiro de 2000



Como de praxe, a mídia tradicional e os economistas mainstream, por algum motivo obscuro, possuem aversão à moeda forte. Todas essas ideias sem sentido podem ser refutadas com dados e, também, com o tempo, já que nesse ano completamos 20 anos de dolarização no Equador.


Talvez para eles fosse melhor que o Mahuad simplesmente continuasse tendo um banco central em pleno funcionamento (principalmente para Krugman), controlado por políticos ávidos por gastança, em nome do nacionalismo monetário. Mesmo que isso resulte em uma economia depredada (que é o que já estava acontecendo com a nascente hiperinflação), o que importa é que agora o Equador teria soberania em ter a sua própria máquina de destruir a moeda. E com isso, eles talvez esperassem que um banco central controlado por um governo historicamente conhecido por calotes na dívida externa e tomado por enorme instabilidade política, fosse milagrosamente entregar um sucre fuerte ou, pelo menos, uma economia sólida com uma moeda doente. Afinal, será que essas falas acima fazem sentido? Ao longo do artigo descobriremos.


Steve Hanke foi indicado como conselheiro para o Ministério das Finanças e da Economia em 2001, para ajudar nos demais processos de dolarização. Em 2003 ele recebeu o título honoris causa de Doutor em Artes, da Universidad San Francisco de Quito e, em 2004, foi nomeado professor associado pela Universidad del Azuay em Cuenca, Equador e uma bolsa de estudos em dolarização, pelo seu legado no país.


O Brasil, naquele mesmo período, já estava sofrendo com o fim do câmbio atrelado (por acaso, no ano da Crise do Real explodiria uma greve de caminhoneiros). Para piorar, tempos depois a bolha das empresas pontocom explodiria e provocaria fuga mundial para o dólar [4]. A Argentina teria um triste fim para o câmbio fixo naquele ano de 2002.


Apesar da saída forçosa, o sucessor de Mahuad se comprometeu a respeitar a dolarização.


O país recebeu ajuda do Fundo Monetário Internacional (como de praxe) mas, ao contrário do que foi recomendado pelos burocratas, o Equador não aumentou nenhum imposto pois o julgava inconstitucional (já havia o imposto de 12 % sobre vendas). A Argentina, pelo contrário, além de destruir a moeda, aumentou vários impostos (esperemos que o Meirelles e outros aqui do Brasil tenham aprendido isso).


As reservas internacionais, que haviam evaporado quase que por completo do país, voltaram a subir lentamente, começando a subir com consistência após janeiro de 2004, chegando à quase US$ 3 bilhões no meio de 2007.


O crescimento do PIB também foi bastante forte, finalmente saindo da estagnação da década de 90:

Crescimento anual do PIB, janeiro de 2000 a setembro de 2007



A produtividade subiu de maneira respeitável, também saindo da estagnação na década de 90:


Produtividade por hora trabalhada, 1995 a 2007, ajustada por diferenças de preço entre países (ajuste na paridade por poder de compra) e pela inflação.



A taxa de juros, que chegou a 65 % ao ano, despencou para níveis abaixo dos 20 % logo após a dolarização.


Taxa de juros, janeiro de 2000 a janeiro de 2007



[ATUALIZAÇÃO E CORREÇÃO 29/10/2021] As taxas de juros continuam sendo controladas (através da Resolución N°437-2018-F) pelo Consejo de Gobierno del Banco Central de Ecuador, que são a chamada Tasa Activa Referencial.


O que passou a crescer também foi o PIB per capita, medido pela paridade do poder de compra, aumentando 19 % em 7 anos.


PIB per capita, 2000 a 2007



As exportações também cresceram e atingiram alta histórica. Parte da ajuda também foi pelo fato de o dólar ter ficado mundialmente fraco, o que deixou as commodities mais caras em dólar (o que entretanto não prejudicou os equatorianos, já que o padrão de vida deles subiu):


Exportações em valor (em mil US$), janeiro de 1990 a janeiro de 2007



A inflação, que já estava ameaçando chegar como hiperinflação no começo de 2000, simplesmente afundou:


Inflação de preços acumulada dos últimos 12 meses, janeiro de 2000 a janeiro de 2007




Inflação de preços, janeiro de 2003 a janeiro de 2007, em acumulado dos últimos 12 meses. Não se atingia níveis tão baixos de inflação desde pelo menos 1970!



O orçamento do governo foi rigidamente controlado. Foram sete anos seguidos de superávit orçamentário, algo extremamente raro para países do continente, ainda mais de um país com instabilidade institucional e política como o Equador.


Orçamento anual, 1990 a 2007 (em % do PIB)



A dívida bruta, a qual estava se aproximando dos 100 % do PIB, foi varrida, embora parte da queda se credite ao calote na dívida externa. Mesmo assim, uma austeridade de dar inveja à Margaret Thatcher e Ronald Reagan.


Dívida bruta (% do PIB), 1990 a 2007. Parte da queda se deve também ao calote na dívida.



Entretanto, apesar dessa austeridade e da dolarização, o país continuou bastante ruim em liberdade econômica, pior até do que o próprio Brasil:


Comparativo de países sul-americanos em liberdade econômica, 1995 a 2007.



Esse foi o fator retardatário do desenvolvimento no Equador: falta de liberdade econômica. Normalmente países livres são automaticamente associados com moeda forte e estável. No Equador, é um caso de país com pouca liberdade econômica e que recebeu uma moeda forte. Na Europa de hoje temos a Grécia como exemplo parecido.



Chega o chavismo, mas esse chavismo é diferente


Desde a deposição de Mahuad, em apenas 7 anos, foram três presidentes assumindo o poder. Oficialmente o mandato dura quatro anos, mas os três sucessores duraram apenas 2 anos.


Então chegamos às eleições presidenciais de 2006. Elas foram iniciadas no dia 15 de outubro naquele ano.


Quem fora eleito foi o Rafael Vicente Correa Delgado, conhecido como Rafael Correa, à época com apenas 43 anos. Seu partido era o Patria Altiva i Soberana, partido socialista e que é filiado ao Foro de São Paulo.


Com vida universitária completa e boa educação, Rafael é abertamente socialista e admirador do então presidente venezuelano Hugo Chávez. A eleição de Correa foi certamente motivo de pânico para os investidores, do mesmo jeito que a eleição de Lula foi para o Brasil em 2002. Para piorar, Rafael Correa havia sido um crítico da dolarização.


Será que ele iria recriar o sucre? Proibir o dólar?


Na foto, Hugo Chávez, Evo Morales, Lula e Rafael Correa. Nessa época, Brasil também estava no Foro de São Paulo (por isso o nome "São Paulo").



A pontuação em liberdade econômica praticamente se estagnou, nem piorando muito, mas também não melhorando, conforme demonstra gráfico abaixo.


Pontuação em liberdade econômica, 2006 a 2016 (não há anos mais recentes; entretanto em 2017 ele avançou ligeiramente).



Rafael Correa se dizia um combatente do "neoliberalismo" (sendo que ele provavelmente não conhece esse termo) e, entre as medidas desastradas, temos o fato de que ele não quis assinar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos.


Também, ele elaborou um plebiscito para elaborar uma nova constituição no país, a qual daria mais poderes para ele, inclusive para decretos. Passada a aprovação, por alguma esperteza o Rafael alterou os estatutos para conseguir mais poder. Assim, o país conseguiu, em sua história de independência, vinte constituições (a atual é de 2008). O Brasil, por comparação, teve sete constituições diferentes em período de tempo similar.


No ano de 2009, ele seria reeleito com uma grande folga, inaugurando então a nova constituição, a qual foi aprovada no ano anterior. No artigo 303 da constiuição nova, o banco central do país perderia autonomia, onde as funções de política cambial (uma brecha para recriar o sucre?), monetária, creditícia e financeira consta como faculdade exclusiva do Executivo, sendo instrumentalizada pelo banco central.


Naquele mesmo ano, haveria uma crise energética no país, quando uma seca atingiu a capacidade das usinas hidrelétricas, causando prejuízos milionários em toda a economia com os blecautes. Mais da metade do setor de eletricidade do país depende de hidrelétricas, e hoje o estado também controla esse setor, com estatais como a Corporación Eléctrica del Ecuador (hoje a maior empresa do setor no Equador, na prática sendo um setor estatizado).


Como era de se esperar daquele país, em 2010 estouraria uma crise política, quando policiais da Polícia Nacional do Equador (e alguns membros das Forças Armadas) bloquearam estradas, ocuparam a Asamblea Nacional (o congresso do país), o Aeroporto Internacional Mariscal Sucre (o mais ocupado do Equador) e o Aeroporto Internacional José Joaquín de Olmedo, além de terem assumido a estação da TV Equador, onde eles anunciaram uma greve. Greve contra o quê? Contra a chamada Ley orgánica del servicio público, passada para padronizar os pagamentos e benefícios ao funcionalismo estatal. Essa lei incluiu cortes de bônus natalino, bônus para medalhas e prêmios baseados no tempo de serviço para militares do Exército. Essa austeridade claramente enfureceu parte do funcionalismo, principalmente militares. Como bom populista, Rafael Correa se arriscou e foi comparecer em um quartel, fazendo discursos inflamados e falando que os rebeldes "estavam traindo o povo e o país" e falando "Se você quer matar o presidente, aqui está ele. Mate-me, se você quiser fazê-lo. Mate-me se você for corajoso o suficiente!". Como ele foi alvejado e atingido por uma bomba de gás lacrimogênio, isso acabou e ele teve que ser escoltado para um hospital. O hospital foi cercado por policiais rebeldes e ele não conseguia sair dele. Houve confrontos entre apoiadores dele e militares e policiais revoltosos. Tempos depois, tropas de elite e policiais tiveram de fazer uma operação para resgatá-lo, com direito a troca de tiros e simulação de guerra civil.


Eis o vídeo do resgate dele:




Em um contexto de um golpe ter ocorrido no ano anterior em Honduras, alguns militares rebeldes estavam com pretensão de matá-lo e tomar o poder. Se aqui no Brasil nos chocamos com Lula sendo denunciado de novo, deveríamos ver que há locais ainda mais instáveis do que o Brasil. Cinco pessoas morreram (entre elas militares que foram ao resgate) e dezenas ficaram feridas no confronto. A lei recebeu algumas alterações (entre elas um aumento salarial para policiais e militares), por um acordo entre o governo e parlamentares do partido. Ela ainda está em vigor. Entre os artigos, um deles proíbe a greve de funcionários especialmente do setor de saúde, ensino, petróleo, seguridade social, saneamento, bombeiros, correios e telecomunicação.


No ano de 2009, o país entraria na chamada Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (no Espanhol: "Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América"), entrando no vergonhoso grupo de países cujos governos eram socialistas e tinham objetivos ideológicos, envolvendo grandes empresas estatais nacionais, dentro daquele nacionalismo clichê que lembra tanto Getúlio Vargas quanto a União Soviética. Criado por Hugo Chávez em 2004, essa união compreendia Cuba, Nicarágua e Bolívia, além de claro a Venezuela e o Equador. Os fundamentos dessa união estavam, segundo Hugo Chávez, em: independência, revolução e socialismo.


Em 2011, mais um referendo populista e autoritário foi aprovado, o qual incluiu limitação de transações bancárias, controle na mídia, proibição de cassinos e jogos de azar, entre outras coisas. Para piorar, o partido de Correa conseguiu maioria no Congresso.


Uma concessão de exploração mineral na região sul do Equador foi feita em 2012, através de um acordo com uma empresa mineradora chinesa. Quem exploraria a região é a EcuaCorriente, subsidiária do consórcio chinês CRCC-Tongguan (cujo investimento custou US$ 1,4 bilhão à época). Isso gerou protestos da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador, alegadamente por prejuízos ambientais e por atingir os nativos que moram na região. A confederação havia o apoiado nas eleições de 2006. Os protestos acabaram não dando em nada e o projeto foi levado adiante. Rafael Correa foi acusado pela confederação de "apoiar o livre mercado".


Por algum desespero, Correa inventou de impôr controles de preços em dezenas de produtos em 2013, alegadamente diante de uma inflação absurda de menos de 5 % (sim, ele impôs controles de preços em um país com baixa inflação, o que acentua ainda mais a estupidez).


Naquele mesmo ano, ele teria a sua última reeleição, ainda com bastante folga. A essência do governo se manteve, sem grandes alterações. No ano seguinte, ele faria a absurda medida de banir o Bitcoin e outras criptomoedas. Atualmente na Venezuela o uso é certamente banido pelo governo (ou o dólar é extremamente restringido), mas as pessoas usam as criptomoedas e moedas estatais mais fortes por simplesmente falta de opção.


Tarifas de importação seriam elevadas em 2015, inclusive de alimentos, o que pioraria ainda mais, já que a pauta de importações do Equador é extremamente diversa.


Embora abertamente socialista, autoritário e chavista, Rafael Correa, por algum motivo misterioso, era pragmático. Assim como foi o Lula, Correa estava mais preocupado com programas populistas e assistencialistas do que em diretamente tomar o poder e sair estatizando todo o setor privado, como fizera Hugo Chávez. Apesar do discurso anti-americano, ele manteve a dolarização e não passou à sua cabeça a ideia de recriar o sucre e proibir o dólar (como recentemente vimos com o pobre Zimbábue).


Agora vamos aos fatos (e dados) macroeconômicos sobre o país.


O orçamento voltou a sair do controle:


Orçamento anual, 2008 a 2017 (em % do PIB)



Isso foi causado pelo aumento nos gastos governamentais, o que por consequência aumentou o endividamento:


Dívida bruta (% do PIB), 2008 a 2017



A inflação, entretanto, permaneceu em valores aceitáveis para um país latino-americano (melhores que os do Brasil no período), chegando a ter alguns períodos de deflação no fim de 2017:



Inflação de preços, janeiro de 2008 a janeiro de 2018, em acumulado dos últimos 12 meses.


O desemprego, que chegou aos 17 % após a crise do sucre, se manteve em níveis relativamente baixos para um país com baixa liberdade econômica.



Taxa de desemprego, janeiro de 2008 até janeiro de 2018.



Até o salário mensal nominal médio subiu ao longo dos anos, mesmo que de maneira gradual:


Salário médio, em valores nominais e em dólares correntes, 2008 a 2017.



O PIB continuou crescendo de maneira razoavelmente decente, até que o país sofreu uma pancada à partir do terceiro trimestre de 2015.


Crescimento anual do PIB, outubro de 2007 a setembro de 2017



Assim, foram cinco trimestres seguidos de contração, pior do que a recessão ocorrida em 2009.


PIB per capita, 2008 a 2017. Notar a contração e estagnação após a recessão de 2015.



Taxa de juros, fevereiro de 2007 a janeiro de 2018



Pela posição geográfica, terremotos são corriqueiros no Equador. O país sofreu terremotos em 2014 e em 2016, este último um tremor bem mais forte e que matou mais de 600 pessoas, com milhares de feridos. Com tamanho prejuízo, Rafael aceitou ajuda milionária do FMI para reconstruir aquilo que foi destruído pelo terremoto. Infelizmente, isso serviu como oportunidade para ele aumentar os impostos. O aumento, entretanto, foi temporário.


Para piorar a situação, um outro El Niño surgiria para acometer o país, iniciando em maio de 2014 e terminando em definitivo somente em 2016. Se aqui no Brasil ele causou uma seca prolongada na região Sudeste a ponto de passarmos por um período soviético de racionamento de água (sugiro ver este artigo), no Equador provocou grandes prejuízos no setor pesqueiro. Vale lembrar que 17 % das exportações equatorianas é composta de pescados.


Anomalias na temperatura média superficial dos oceanos, 11 de outubro de 2015 a 7 de novembro de 2015. Imagem retirada da National Oceanic and Atmospheric Administration.



Com isso, a produtividade passou a cair em 2014. No ano de 2017 a produtividade voltaria para níveis parecidos com os de 2010:


Produtividade por hora trabalhada, 2008 a 2017, ajustada por diferenças de preço entre países (ajuste na paridade por poder de compra) e pela inflação.



Em 2015, a exportação de pescados caiu, ao passo que exportações de frutas caiu no ano seguinte, entretanto se recuperando logo no próximo ano. Atualmente os maiores consumidores dos produtos equatorianos são dos Estados Unidos. A taxa de poupança também aumentou desde a dolarização, de modo que hoje os equatorianos poupam mais do que os brasileiros. Naquele mesmo ano, um grande protesto surgiria contra as medidas do Rafael Correa de expandir seus poderes, assim como no aumento da tributação sobre a herança.


A pobreza extrema, que explodiu com a crise do sucre para mais de 25 % da população, despencou para os menores níveis da história, não chegando sequer a 5 % da população.


Proporção da população vivendo na extrema pobreza, 1987 a 2016.



A Venezuela, outro país rico em petróleo, traçou um caminho bastante humanitário para o povo com relação no combate à pobreza.


Enquanto a produção de petróleo venezuelana se estagnou, no Equador foi subindo, independentemente dos preços internacionais do petróleo:


Produção de petróleo por país, em índice. O índice era de 100 em 1999. A produção americana subiu após 2012 graças à descoberta das reservas de xisto. Imagem retirada deste artigo.



Então, ficamos com dois tipos de chavismos: o chavismo dolarizado, do Rafael Correa, e o chavismo "original" de Hugo Chávez.


Com o dólar mantido como moeda corrente, a aprovação de Correa ficou bastante alta, acima dos 60 % entre a população, no ano de 2014. Só perde mesmo para o dólar, cuja aprovação entre a população está em 82 %.


Rafael, em suma, é um esquerdista com elementos contraditórios: é contra o aborto mesmo em casos de estupro, deu refúgio a Julian Assange (ao mesmo tempo em que perseguia a imprensa e processava seus opositores) e não perseguiu o setor privado como fez o seu amigo Hugo Chávez.


Como o dólar estava mundialmente fraco à época (consequentemente aumentando o montante arrecadado pelo governo com o petróleo mais caro), o governo então pôde se beneficiar disso aumentando os gastos, inclusive com programas assistencialistas. Com o fortalecimento do dólar após 2014, além da descoberta das reservas de xisto pelos americanos após 2012, o preço internacional do petróleo desabou, o que cobrou a conta pelo aumento nos gastos feito pelo governo Correa durante os anos de "bonança". Por outro lado, com o retorno do dólar forte, os equatorianos se beneficiaram de um maior padrão de vida e de uma menor inflação de preços.


Ele foi mais um daqueles presidentes que se beneficiaram com uma moeda forte: Fernando Henrique Cardoso foi reeleito no primeiro turno (algo que nunca aconteceu na história do país), mas o seu segundo mandato, com o câmbio desvalorizado, ofuscou os motivos que o levaram a ser reeleito. Lula também foi outro beneficiado pela moeda forte (graças ao Meirelles), algo que a sucessora Dilma não conseguiu.



Chegou o Moreno


Após aproximados 10 anos no poder, Rafael decide abrir mão da presidência, deixando o seu lugar para o seu vice-presidente Lenín Moreno. As eleições presidenciais, então, foram feitas no dia 17 de fevereiro de 2017, juntamente com um referendo sobre políticos e funcionários estatais terem ativos e contas em paraísos fiscais (sim, isso mesmo). O referendo em questão foi aprovado (embora com muitos votos contrários), ao passo que Moreno foi eleito com pouca margem sobre o perdedor Guillermo Lasso. Ao passo que Lasso era mais do lado supply-sider, o qual defende redução de impostos e despesas, além de mais abertura comercial, Moreno é originalmente do mesmo partido socialista de Rafael Correa.


Apesar disso, Lenín Moreno era ainda mais pragmático, pois queria se distanciar do chavismo de Rafael Correa, "sendo aberto ao diálogo".


Moreno é formado em administração pública pela antiga Universidad Central del Ecuador (fundada em 1620), ex-professor, pai de três filhas e tornou-se cadeirante, após levar um tiro nas costas durante um assalto na década de 90. Com isso, tornou-se ativista pelos direitos dos deficientes. Além de ter sido eleito, ele também conseguiu a maioria no Congresso, assim como o antecessor.


Com um governo novo (ou não) e depois de dez anos de chavismo, o Equador sai da atrasada Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América em agosto de 2018, de forma que os principais países no bloco agora passariam a ser apenas Venezuela, Cuba e Nicarágua (a Bolívia saiu em novembro de 2019). Em março de 2019, ele anuncia a saída do Equador da Unasul, uma outra organização para fins ideológicos, unindo os regimes latino-americanos esquerdistas da região (Brasil foi outro país que saiu da união). No mesmo ano, o ministro da educação Milton Luna também anunciou a retirada de livros com doutrinação socialista (e que estavam realizando culto à personalidade do próprio Rafael Correa) do sistema de ensino.


Em 2018, o governo reduziu o número de ministérios e secretarias de 40 para 27, assim como na redução de subsídios e aumento na concorrência de fornecedores para licitações para reduzir custos. Ele passa também a chamada Lei de Desenvolvimento Produtivo, com a finalidade de atrair investimento estrangeiro. Em 2019, ele corta todos os subsídios à gasolina e ao diesel (exceto para gás liquefeito de petróleo e diesel industrial), subsídio este bastante incompreensível para um país produtor de petróleo. O preço do galão da gasolina disparou (de US$ 1,85 para US$ 2,30), assim como o do diesel (US$ 1,03 para US$ 2,27). Com esse aumento proporcionado pela volta à realidade, houve um efeito cascata em toda a economia, já que os veículos de transporte utilizam gasolina ou diesel como combustível. Sete por cento dos gastos governamentais estavam nos subsídios à gasolina, ao diesel e à eletricidade.


Com a dívida crescente herdada do Correa, Moreno entrou em um acordo com o FMI para conseguir ajuda (um empréstimo de US$ 4,2 bilhões), e nesse acordo o FMI exigia: corte nos subsídios aos combustíveis, remoção de algumas tarifas de importação e cortes em salários e benefícios no funcionalismo estatal.


Isso obviamente causou mais protestos e enfureceu principalmente setores de esquerda (inclusive a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador), causando mais uma baderna no país e uma dor de cabeça para o presidente. Entre as pessoas envolvidas no protesto, curiosamente estavam pessoas como o próprio Rafael Correa (que semanas atrás, havia criticado os subsídios aos combustíveis na Venezuela). Curiosamente, o Equador não seria o único a ter protestos assim. O vizinho Chile teria algo próximo. Os protestos no Equador foram bastante violentos e Lenín Moreno teve que transferir a sede do governo de Quito para Guayaquil, além de ter que declarar estado de sítio. Talvez acuado pelos manifestantes raivosos, esses subsídios infelizmente voltaram a existir, com a revogação do decreto 883.


O governo também faz uma leve abertura do setor elétrico para o setor privado investir, dentro daquele tradicional arranjo de concessão. É melhor do que como estava antes, mas os regimes de concessões são geralmente propensos à ineficiência e a custos altos.


A economia equatoriana, todavia, não cresceu mais àquelas taxas de outrora, sofrendo arrefecimento desde o fim de 2018:


Crescimento anual do PIB, setembro de 2017 a março de 2020


Em 2019, com a correção das distorções dos combustíveis, o PIB por consequência caiu, pois no cálculo do PIB não estava computado os subsídios dos combustíveis como um gasto depredador, e sim como um gasto adicionador, já que aumento no gasto governamental computa como positivo para o PIB. Isso é tanto verdade que, com o novo governo, houve um aperto nos gastos estatais, mais exatamente à partir de 2017, quando o novo governo assumiria.


Orçamento anual, 2010 a 2018 (em % do PIB)


O orçamento, portanto, voltou para os mesmos níveis de 2012, embora haja espaço para melhorar.


A dívida, por ora, ainda está aumentando, mesmo que de maneira lenta:


Dívida governamental em relação ao PIB, 2010 a 2019



Infelizmente, assim como no Brasil e em muitas partes do mundo, Moreno adotou as absurdas medidas envolvendo lockdowns, tomando um caminho equivocado também do ponto de vista econômico (e que irá trazer uma forte contração para a economia do país). Isso obviamente teve grandes reflexos na economia do pequenino país costeiro, já que muitos setores econômicos ficaram proibidos de funcionar, resultando em queda generalizada na atividade econômica. Ainda não temos os dados do PIB do segundo e terceiro trimestres, mas algumas coisas já podem ser traçadas e que trazem um interessante paralelo com relação a um país com banco central próprio, como o Brasil.


Não temos ainda os valores de desemprego mais recentes. Então, os dados mais recentes vão até dezembro de 2019. No período, o desemprego permaneceu relativamente sob controle para um país com rígida legislação trabalhista e ainda ruim para investimentos:


Taxa de desemprego, janeiro de 2018 até dezembro de 2019.


Os déficits, em valores brutos, apesar da paralisia na economia equatoriana, não explodiram e por ora permanecem em valores parecidos aos do começo do governo Moreno, até menores do que em vários dos meses anteriores no governo. Em julho de 2020, houve um déficit de 152,66 milhões nas contas estatais.


Orçamento governamental, por mês, de janeiro de 2010 a setembro a julho de 2020 (em milhões de dólares).


Orçamento governamental, por mês, de janeiro de 2017 a setembro a julho de 2020 (em milhões de dólares).



Os gastos totais do governo também caíram desde o fim de 2018 (em valores nominais, algo extremamente raro), e com tendência de queda nesse começo do ano (temos dados até março de 2020, por enquanto).


Gastos governamentais, primeiro trimestre de 2010 até primeiro trimestre de 2020 (em milhares de dólares).



Agora, comparando ao Brasil:


Orçamento governamental, por mês, de janeiro de 2010 a julho de 2020 (em milhões de reais).



Orçamento governamental, por mês, de janeiro de 2017 a julho de 2020 (em milhões de reais).



Gastos governamentais, primeiro trimestre de 2010 até primeiro trimestre de 2020 (em milhões de reais).



Evidentemente que a ausência do banco central no Equador forçou uma austeridade, ao passo que no Brasil os anos de ajuste no governo Temer foram praticamente perdidos neste ano de 2020.


Com a queda na atividade econômica (tanto agora quanto nos trimestres anteriores), tivemos um fenômeno bastante interessante e raro: deflação de preços.


Taxa de inflação acumulada dos últimos 12 meses, janeiro de 2018 até julho de 2020.



Como vivemos em uma economia comandada pelo sistema de reservas fracionárias e pelo banco central, então normalmente crescimento econômico é associado com inflação de preços (mas não como os desenvolvimentistas e keynesianos pensam). No caso equatoriano, o PIB cresceu (mesmo que de maneira tímida) na segunda metade de 2018, ao mesmo tempo em que os preços gerais caíam. Isso certamente foi um alívio para os moradores do país, que agora ganhavam poder de compra, já que agora os bens e serviços estavam mais baratos.


Como mostra esse artigo:


"Preços em queda são exatamente a "grande vantagem" de uma recessão econômica.


Apenas se pergunte a si próprio: durante uma recessão, você quer que o poder de compra do seu dinheiro aumente ou diminua? Se o futuro do seu emprego está em risco, você quer pagar mais ou menos por bens e serviços? Se a sua poupança é baixa, você quer que este seu pequeno dinheiro acumulado tenha maior ou menor poder de compra no futuro?


Se você responder a estas questões racionalmente, você pode entender por que a deflação de preços é ótima para todos, sendo inclusive a redenção em um período de contração econômica.


Se temos de aturar uma recessão causada pelo governo, então que ela ao menos seja uma recessão deflacionária. Muito pior seria uma recessão inflacionária: você perde seu emprego e sua renda, e seu custo de vida continua subindo. Pelo mesmo motivo que uma deflação de preços é algo bom, preços crescentes durante uma recessão representam o pior dos mundos: além de todo o estrago no bem-estar, tal fenômeno também desestimula a poupança e o investimento futuro. Ele estimula o consumo presente e, com isso, afeta a acumulação de capital necessária para o crescimento futuro (entenda os detalhes aqui). É o perfeito exemplo do prolongamento do sofrimento. "



Importante salientar que a força que controla a inflação no Equador é o próprio dólar. Ou seja, quando o índice DXY sobe, o dólar fica mais forte. O índice DXY nada mais é que o índice onde é medida a força do dólar perante as seguintes moedas: euro, iene japonês, libra esterlina, dólar canadense, coroa sueca e franco suíço. Quanto maior o índice, mais forte é o dólar perante essas moedas. Quanto menor o índice, mais fraco é o dólar perante essas moedas. Como dito inúmeras vezes, foi após 2014 que o dólar voltou a ficar mundialmente forte e, não coincidentemente, a inflação de preços equatoriana passou a ficar ainda menor, chegando a níveis de países desenvolvidos, conforme mostra o gráfico acima. O regime cambial no Equador funciona exatamente como um câmbio flutuante de um país desenvolvido: as flutuações ocorrem, mas elas não causam grandes turbulências econômicas a ponto de provocar um descontrole na inflação. As exportações e as importações então acompanham essas flutuações.


Infelizmente, em 2018 ele aumentaria os impostos sobre as empresas, dando um aumento de três pontos percentuais, de 22 % para 25 % (contraditoriamente ele diminuiu os impostos sobre as vendas em dois pontos percentuais). Parece pouco, mas o fardo sobre o setor privado que gera empregos já é o suficiente para ocasionar custos adicionais de produção. No mesmo ano, ele faria uma pequena reforma no sistema trabalhista, o qual é tão ruim que é bastante próximo ao existente no Brasil. No ano seguinte ele teria a infeliz ideia de propôr uma espécie de reforma tributária, com aumento de impostos embutido nas grandes empresas e com fim de deduções para pessoas de maior renda. Como era de se esperar, essa suposta reforma estava em uma das partes do acordo com o FMI para obter empréstimos (isso mostra que o FMI não defende o livre mercado). Para ser justo, pelo menos o sistema tributário seria simplificado. Mas simplificar o sistema tributário e ao mesmo tempo aumentar os impostos é algo que praticamente se anula. Atualmente o sistema tributário do país é um dos mais complexos do mundo, apesar de ainda ser menos complicado do que o brasileiro.


Em setembro deste ano de 2020, Lenín Moreno, por meio de um decreto, autoriza a importação de combustíveis, gás e derivados por empresas privadas nacionais e estrangeiras e pessoas físicas. Antes, somente a estatal Petroecuador podia fazer esse procedimento. No mesmo ano, como parte do acordo com o FMI, o governo foi obrigado a elaborar e aprovar a chamada Ley de Finanzas Públicas, na qual impõe limites no crescimento do gasto governamental, assim como dá poder para o governo impôr limites orçamentários para várias autarquias. A instituição da previdência social, entretanto, ficou de fora por vetos durante a votação no congresso local. O Banco Central passa também a possuir autonomia. Agora o governo pode aumentar o orçamento em até 5 %. Antes, ele podia aumentar em até 15 %. A lei também cria um fundo de poupança (uma espécie de seguro de petróleo e mineração), supostamente para lidar em situações nas quais, por exemplo, o preço do petróleo desaba. Apesar do acordo (ou por causa dele?), no mesmo ano o governo novamente anunciaria uma nova moratória na dívida externa.


Outro fenômeno interessante é que, graças à forte moeda e sem um banco central a mando de políticos latino-americanos, os custos de produção se mantiveram relativamente contidos. Nos últimos meses, mesmo com os lockdowns (ou por causa deles), os custos aos produtores foram caindo, o que certamente foi um alívio para os empreendedores que ficaram proibidos de trabalhar ou ficaram com demanda reduzida:


Índice de preços ao produtor, janeiro de 1999 a julho de 2020, acumulado dos últimos 12 meses.


Notar que, após a dolarização, os maiores índices foram justamente nos períodos de dólar mundialmente fraco. Mesmo assim, se mantiveram em níveis bem mais civilizados do que nos tempos de sucre.


Agora, vejamos mais de perto:


Índice de preços ao produtor, janeiro de 2018 a julho de 2020, acumulado dos últimos 12 meses.


Agora comparemos ao Brasil, pegando os dois mesmos períodos.


Índice de preços ao produtor, janeiro de 1999 a julho de 2020, acumulado dos últimos 12 meses.


A Crise do Real evidentemente foi bem mais amena do que a crise do sucre no Equador, entretanto, mesmo nos períodos de real mundialmente forte, os índices de preços ao produtor frequentemente passavam de 10 %.


Por questão de escala, ler os gráficos do Equador com uma hiperinflação em 2000 ficou difícil de comparar ao Brasil. Por este motivo, decidi encurtar um pouco o período.


Índice de preços ao produtor no Equador, janeiro de 2002 a julho de 2020, acumulado dos últimos 12 meses.


Notem de que os preços ao produtor ficaram mais controlados, mesmo sob o governo chavista de Rafael Correa. Ou seja, Rafael Correa foi sábio em não ter banido o dólar, e isso deu alguma sustentação ao seu governo. Houvesse ele banido o dólar, aquela bagunça monetária do fim da década de 90 voltaria, talvez sendo até pior pois ele era abertamente socialista, o que não fora exatamente o caso de Jamil Mahuad e seus antecessores.


Agora, vamos olhar o índice de preços ao produtor no Brasil de mais de perto:



Índice de preços ao produtor no Brasil, janeiro de 2018 a julho de 2020, acumulado dos últimos 12 meses.


Nesses 19 anos, o PIB per capita do país subiu 39,12 %. Para comparar, no Brasil esse valor aumentou em 26,33 %. Devemos levar em conta de que em economias menos desenvolvidas, o crescimento do PIB tende a ser maior, pelo fato de a base estar pequena.



Mas por que o Equador ainda está atrasado?


Se a moeda forte traz tantos benefícios, então por que, afinal, o Equador não teve um crescimento sul-coreano? Um crescimento de um país báltico? Deixando de lado um possível fator de cultura de trabalho entre esses países, a primeira coisa que temos de levar em conta é que um país se tornar desenvolvido leva tempo. Todavia, quanto mais aberto aos investimentos estrangeiros e nacionais, quanto melhor for o ambiente de negócios, mais rápido será esse crescimento. No século XIX, os países demoravam mais para se enriquecer (foram décadas para os Estados Unidos chegarem ao que é hoje, e isso sob um padrão-ouro), pois a produtividade ainda era baixa. No mundo atual, esse caminho está menos difícil, graças à globalização e ao barateamento do custo da informação, afinal informação é também um bem econômico.


Ter uma moeda forte e estável como o dólar ajuda bastante, mas não faz milagres. O dólar americano não tem poder automático de, de repente, mudar a pontuação de liberdade econômica do país, fazer reforma trabalhista, tributária e de mudar todo o ambiente de instabilidade política e jurídica. Na verdade o dólar protege o país dessa instabilidade, já que fosse o sucre flutuante ainda existente, ele seria uma moeda extremamente volátil e traria grandes incertezas a cada nova crise política (como está o real agora). Karl Schiller, ministro das Finanças alemão (de 1966 a 1972), que era social-democrata, disse "A estabilidade pode não ser tudo; porém, sem estabilidade, tudo vira um nada." 


Pegando o exemplo estoniano e comparando o crescimento econômico (que outrora foi um país mais pobre do que o Equador), de 2000 a 2019, no mesmo período, tivemos um crescimento de 106,13 %. O Panamá, outra economia dolarizada, viu o seu PIB per capita crescer, no mesmo período, 116,82 %.


Agora, comparemos Brasil, Panamá, Equador e Estônia em outro gráfico:


PIB per capita de Estônia, Panamá, Brasil e Equador, 2000 a 2016 (não há dados mais recentes do que isso), ajustado para inflação e diferenças de preços entre os países, mensurado em dólares de 2011.


Ao passo que a Estônia é uma das economias mais livres do mundo, o Brasil e o Equador estão entre as economias menos livres do mundo. O Panamá já fica em uma linha intermediária.


O Equador cresceu, mas perdeu a oportunidade de crescer ainda mais, se estivesse provido de um ambiente mais propício aos investimentos. Foram anos que poderiam ter sido gastos em adotar uma ampla reforma no sentido supply-side: fazer uma reforma tributária, trabalhista, abertura comercial, entre tantas outras coisas.


Apesar disso, a ausência de um banco central para imprimir dinheiro e ajudar o governo a emitir dívidas fez com que os equatorianos não sofressem com a desvalorização cambial, como sofriam quando ainda eram obrigados a usar o sucre. Isso fez com que, também, o país aguentasse dez anos de um governo chavista ávido por gastos, sem que isso desencadeasse em uma inflação de preços aos moldes (pelo menos) argentinos.


Esse fenômeno de ausência de banco central para países com histórico inflacionário pode ser exemplificado por este artigo de Jesús Huerta de Soto, quando expôs os exemplos de países europeus com histórico de inflação alta:


"Ademais, isso que ocorreu na Espanha também está ocorrendo na Irlanda, em Portugal, na Itália e até mesmo em países que, como a Grécia, até hoje representavam o paradigma da frouxidão social, da falta de rigor orçamentário e da demagogia política.


Pela primeira vez, e graças ao euro, a Grécia está enfrentando os desafios impostos pelo seu próprio futuro. Pela primeira vez, o tradicionalmente corrupto e falido governo grego adotou medidas drásticas. Em dois anos (2010-2011), o déficit público caiu 8 pontos percentuais; os salários dos funcionários públicos foram cortados inicialmente em 15 % e posteriormente em mais 20 %, e a quantidade deles foi reduzida em aproximadamente 80.000 empregados; o número de câmaras municipais foi cortado à metade; a idade de aposentadoria foi elevada; o salário mínimo foi reduzido. Esta 'heroica' reconstrução contrasta com a decomposição social e econômica da Argentina, que tomou a estrada oposta (keynesiana e monetarista) rumo ao nacionalismo monetário, à desvalorização e à inflação. "



Anos depois, a Grécia enfrentaria outros problemas fiscais. Entretanto, o governo local fez uma brutal austeridade em 2016 e, ao menos por enquanto, colheu quatro anos seguidos de superávit orçamentário (inclusive contando pagamento de juros da dívida). E quem fez isso? Um governo abertamente socialista, do partido de extrema-esquerda Syriza. É como se um eventual governo do PSOL no Brasil fizesse austeridade. Não fizeram isso por mudança de ideologia, mas simplesmente fizeram por falta de recursos e pelo fato de que não havia nada para ser feito.


Fenômenos parecidos aconteceram também com Espanha e Portugal. A Grécia, que tinha um histórico inflacionário (desde o fim de Bretton Woods a inflação de preços raramente ficava abaixo dos 10 % ao ano), após o início da década de 90 e com a entrada na Zona do Euro em 2000, de repente ganhara inflação de países civilizados, sendo que nos piores anos o país não teve nem mesmo uma inflação de 5 % ao ano. Após a crise de 2008, o governo grego também foi obrigado a domar os seus gastos. O país até conseguiu aumentar um pouco o seu grau de liberdade econômica após a abolição dos drachmae (moeda antiga deles). O euro, então, é basicamente um hoplita que defende a Grécia da sanha dos políticos gregos de gerar inflação e endividamento.


Voltando ao Equador, antes mesmo de Jamil Mahuad formalizar o uso de dólares no país, os próprios equatorianos, de maneira até pró-ativa, escolheram a moeda americana. Foi algo que, implicitamente, eles próprios pediam. Hoje o país, além de depender de exportação de commodities, depende também de dólares que chegam de equatorianos que moram fora do país e ajudam os seus familiares no país natal, já que com a crise do sucre no fim dos anos 90, houve uma emigração em massa de equatorianos, principalmente para os Estados Unidos.


Como afirma Lawrence Henry White:


"A dolarização do Equador não foi escolhida pelos formuladores de políticas. Foi escolhido pelo povo. Ele cresceu das escolhas livres que as pessoas faziam entre dólares e sucres. As pessoas preferiam um dinheiro relativamente sólido a um dinheiro claramente doentio. Com suas ações de dolarização, eles se livraram do sucre que se depreciava rapidamente e estabeleceram espontaneamente um padrão de fato em dólares... Finalmente, em janeiro de 2000, o governo do Equador parou de lutar contra as escolhas deles. Até aquele ponto, o estado tentava usar penalidades legais ou subsídios para retardar a troca de moeda."



E, respondendo aos críticos de que o Equador não teria mais a sua própria política monetária:


"Os críticos do plano reclamam que, ao adotar o dólar, os políticos e banqueiros centrais do Equador abriram mão de seu poder de aplicar sua própria política monetária discricionária. Mas se a experiência do Equador e de tantos outros países latinos prova alguma coisa, é isto: você pode fazer pior do que o Fed da América e, de fato, a maioria dos países latinos em um momento ou outro."



A ausência de um banco central no Equador basicamente amarrou as mãos do governo, já que agora ele não pode mais postergar o problema de gastos crescentes e endividamento com mais inflação monetária e emissão de títulos, como hoje faz a grande maioria dos países do mundo. Contabilmente, ou ele corta as despesas e faz as reformas, ou ele literalmente quebra. Caso a segunda situação ocorrer, começa a faltar dinheiro para pagar funcionários, salários precisam ser parcelados, entre tantas outras coisas. Não há greve que possa mudar essa realidade. É basicamente o que, por exemplo, aconteceu no Rio de Janeiro nos últimos anos. Todos os funcionários estaduais tinham o chamado "direito adquirido" quando entraram em suas respectivas funções. Entretanto, quando a coisa começou a apertar e a realidade voltou, então os cortes começaram a ocorrer, porque simplesmente não existe um Banco Central do Rio de Janeiro. Nem as universidades são perdoadas. Quando ainda tínhamos vários bancos estaduais operando no sentido de promover expansão monetária (quando eram socorridos pelo banco central) e os governos estaduais podiam se endividar infinitamente, a hiperinflação era o resultado rotineiro. Hoje estamos tendo a mesma coisa.


Com isso, o agregado monetário M1 (que é a soma de todas as cédulas e moedas metálicas em poder do público mais todos os depósitos à vista) se manteve em crescimento constante, sem chegar a disparar mesmo com o caos monetário mundial nesse começo de ano, com vários bancos centrais brincando de Teoria Monetária Moderna:


Agregado M1, janeiro de 2007 até agosto de 2020.


Ao passo que no Brasil, o M1 cresceu 35,95 % entre janeiro e agosto de 2020, no Equador esse crescimento foi de apenas 6,06 %. Nos Estados Unidos, país de onde saem os dólares, o M1 cresceu 35,65 %.


Comparando ao mesmo período do ano passado, o M1 cresceu 1,58 % no Equador de janeiro a agosto. No Brasil, crescimento de 1,04 %. Nos Estados Unidos, 3,01 % de crescimento. Ou seja, no ano de 2020, o M1 cresceu mais forte mesmo no Equador (pois ele sofre influência do Federal Reserve, o Banco Central Americano), mas o crescimento foi mais contido, pois o dinheiro que é injetado na economia nunca irá chegar de maneira uniforme para toda a economia, tampouco chegará de maneira uniforme para todos os países que usam o dólar como moeda corrente. Então, se realmente o presidente do Equador fosse o presidente do Banco Central Americano (que seria o Jerome Powell), então no mínimo era para termos um crescimento no M1 equatoriano próximo ao americano para esse ano de 2020, não uma diferença tão grande quanto essa.


Não é de se surpreender que o país equatoriano tenha vivenciado meses com deflação de preços.


Como os juros no país oscilam quase todo mês, recentemente tivemos um aumento na taxa de juros no país para 9,12 % ao ano (o que dá um juro real bastante alto, de 9,95 % ao ano, já que em agosto o país teve deflação de - 0,76 % no acumulado de 12 meses), um pouco de sanidade em um mundo maluco por juros negativos:


Taxa de juros no Equador, novembro de 2019 a julho de 2020 (como ainda não mudaram os juros, então as taxas de julho são as atuais).



Os juros oscilam a cada mês, normalmente.


Como afirma Leandro Roque, em seu artigo "Por que o Banco Central é a raiz de todos os males":


"Caso não existisse um banco central, a quantidade de dinheiro na economia se manteria relativamente constante; ela poderia ser aumentada temporariamente pelo sistema bancário caso este praticasse reservas fracionárias, porém essa expansão seria relativamente restrita (os motivos de ser assim também estão explicados no artigo linkado acima).  Sendo assim, com a quantidade de dinheiro relativamente constante, haveria um limite tanto para a quantidade que o estado poderia arrecadar via impostos quanto para a quantidade que ele poderia tomar emprestado junto aos bancos.


Quanto mais o estado se endividasse, quanto mais dinheiro ele tomasse emprestado, menos dinheiro sobraria para os bancos emprestarem para pessoas e empresas.  Consequentemente, maiores seriam os juros cobrados sobre esses empréstimos — afinal, a quantidade de dinheiro a ser emprestada ficou reduzida, pois o governo abocanhou grande parte para cobrir seus gastos.


Logo, o estado simplesmente não poderia sair se endividando continuamente, pois inevitavelmente chegaria um momento em que os juros estariam em níveis calamitosamente astronômicos.  Da mesma forma, ele não poderia sair aumentando impostos para saciar sua sede por recursos, pois poderia acabar incitando uma revolta popular.


[...]


Da mesma forma, toda a intrusão governamental na vida dos cidadãos só é possível de ser financiada porque há essa expansão contínua na quantidade de dinheiro na economia.  Ministérios que querem impor tanto o que nossos filhos devem aprender na escola como até a [condição] sexual deles; agências reguladoras que querem determinar o que podemos e o que não podemos comprar nas farmácias (agora vão proibir remédios para emagrecimento); todas as burocracias, regulamentações e tarifas que tanto os ministérios quanto as agências impõem sobre o mercado a fim de cartelizá-lo em benefício de empresas com boas conexões políticas; subsídios concedidos a grandes empresas via BNDES — tudo isso só ocorre continuamente por causa da criação de dinheiro do Banco Central.


Para enfatizar: nossas liberdades civis e econômicas são continuamente tolhidas e pisoteadas porque há um banco central com liberdade irrestrita para imprimir dinheiro — não há absolutamente nenhuma lei impondo limites na quantidade de dinheiro que o Banco Central pode criar. "



O dólar americano foi basicamente um escudo para toda a instabilidade política e institucional para os equatorianos. Se a moeda forte não traçou a eles um caminho para a prosperidade automática, ela os salvou de um caminho mais provável para ser uma Venezuela do Oeste e permitiu que a economia privada restante pudesse respirar, trazendo ganhos em produtividade e no padrão de vida.


O atual governo parece estar no caminho de reformas, agora resta saber o quão profundas serão essas reformas, pois não há escolha para o país postergar os seus inúmeros problemas estruturais. Ano que vem serão as eleições para o novo presidente no país. Moreno sendo ou não reeleito, que o Equador possa se tornar como o seu vizinho distante, o Panamá.


 

Notas e referências:


[1] BECKERMAN, Paul. Dollarization and Semi-Dollarization in Ecuador. The World Bank: julho de 2001.

[2] HANKE, Steve. Money and the Rule of Law in Ecuador. The Johns Hopkins University and The Cato Institute: setembro de 2003.

[3] Ele também publicou uma espécie de manual de Currency Boards: o livro "Currency Boards for Developing Countries: A handbook".

[4] Recomendação de artigo de época: "Que tal dolarizar o Brasil também?"

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