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Foto do escritorFelipe Lange

120 anos sem Campos Sales (1898-1902)

Atualizado: 24 de dez. de 2022

Injustiçado, Campos Sales trouxe algo hoje impensável para o Brasil: deflação

Felipe Lange


O período republicano deu retorno à uma série de instabilidades para o Brasil, algo que não se via desde o Período Regencial.


Em tempos com escassez de bancos centrais mundo afora, o debate monetário pelo País se dava em torno da estabilidade da moeda ou de como resolver a questão do ouro. Coisas como moeda digital e papel flutuante eram impensáveis.


No início de 2022, tracei uma breve história sobre a Caixa de Conversão, um curto período de alguma sanidade monetária na economia brasileira. Agora iremos um pouco antes disso, ainda mais nos primórdios de republicanismo.



Uma bagunça


Apenas um ano após o golpe dado pelos militares, com a imposição da República, o meio circulante (termo mais antigo, referindo-se aos agregados monetários, possivelmente M1) e o déficit explodiram.


A quantia de papel-moeda disparou, havendo uma alta de 51,6 % entre 1889 e 1890, ao passo que o déficit quase dobrou entre os anos 1890 e 1900 (91,41 %).


Isso foi causado pelo conhecido Encilhamento: uma forte expansão em papel-moeda sem o devido lastro em ouro. Os bancos também entraram na farra, começando a emitir dinheiro garantido por títulos do Tesouro, com tudo isso ocasionando a viabilização de investimentos artificiais, assim como bolhas especulativas e com uma bolha no mercado de ações.


Fonte: ONODY, O. A inflação brasileira (1820-1958). [s.l: s.n.]. Elaboração própria do gráfico.



Fonte: Repertório estatístico do Brasil, quadros retrospectivos n° 1, separata do anuário estatístico do Brasil - Ano V - 1939/1940 (página 139 pelo arquivo digital). Elaboração própria do gráfico.



Sufrágio parcial


Num país tomado por badernas de todos os lados, era a segunda eleição direta presidencial, com componentes como ausência de voto secreto, ampla possibilidade de fraudes eleitorais e o fato de que apenas uma minoria podia votar: analfabetos eram proibidos de votar (segundo o Artigo 70 da Constituição de 1891), em uma época onde 74,5 % era analfabeta (dados de 1900¹). Em conformidade à política dos governadores, o presidente do Brasil teria que ser ou de São Paulo ou do estado de Minas Gerais.


O escolhido para suceder Prudente de Morais fora o Manuel Ferraz de Campos Sales, à época governador do estado de São Paulo (naquele tempo era chamado de presidente). Nascido em Campinas (assim como eu) e apesar de formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, possuía uma longeva carreira política, tendo sido exercida desde os seus 26 anos de idade.


Quem estaria no Ministério da Fazenda seria o Joaquim Murtinho. Joaquim era um fisiocrata (CALDEIRA, 2017, p. 424), mas com uma linha econômica monetária mais conservadora.


Campos Sales prometeu reduzir as despesas e os déficits e pretendia fortalecer a moeda (GUANABARA, 1902, p. 40), este último algo impensável nos candidatos à Presidência nas últimas eleições dos tempos atuais. Ele assumiria o governo em 15 de novembro de 1898.



A Europa, o funding loan e os ajustes


Para tentar melhorar a imagem do Brasil ante a Europa (em tempos onde o continente era uma potência político-econômica mundial e a única forma de viagem internacional era por navios) e, também, para resolver a encrenca da dívida externa, o senhor Campos Sales viajou ao continente, ainda antes de sua posse. O Brasil tinha uma boa imagem entre os soberanos europeus, por ser a única monarquia do continente americano, em tempos onde as monarquias dominavam a Europa, de potências como Alemanha e Áustria-Hungria.


Os banqueiros europeus estavam entre os credores da dívida governamental brasileira. O objetivo de Sales era renegociar a dívida, para evitar uma moratória.


O governo brasileiro e a família Rothschild (a mais rica do mundo à época) acordaram um novo empréstimo, com a contrapartida de o Brasil fazer medidas de austeridade fiscal. Grosso modo, é como se o FMI já existisse na época, só que numa forma de banqueiros privados.


Um dos pontos polêmicos era que a garantia desses empréstimos estaria nas alfândegas, em libras esterlinas (que na época eram a moeda internacional de troca e, além disso, meras denominações de ouro). Isso porque, naquele tempo, grande parte dos impostos coletados vinha por importações (nem se sonhava com imposto de renda). Os banqueiros exigiam também garantias na Estrada de Ferro Central do Brasil e nos serviços de água, mas Campos acabou tirando estas últimas da questão, pois apenas a alfândega seria capaz de custear o serviço da dívida.


Apesar das suas controvérsias, Joaquim Murtinho corretamente diagnosticou que o problema na economia estava no excesso de emissões de moeda (FRANCO, 2011, p. 20) que, segundo ele, estava ocasionando investimentos artificiais tanto na indústria quanto no café. Metalista convicto, defendia o padrão-ouro, em tempos onde o fim da ligação com o metal era apenas matéria de discussões intelectuais entre políticos e ministros, inclusive em jornais, à época mais direcionados às classes mais abastadas e intelectualizadas.


Retrato de Joaquim Duarte Murtinho, por Angelo Agostini.



Outra exigência seria de provocar uma deflação monetária. Como o governo fez isso? Segundo Gustavo Franco (2011):


"Segundo os termos do acordo, o governo se comprometia a depositar em moeda local junto aos três grandes bancos estrangeiros da capital uma certa proporção do valor dos títulos emitidos do funding loan, e o papel-moeda correspondente a essas quantias seria publicamente incinerado. "



Esses bancos eram o London and River Plate Bank, London and Brazilian Bank e Brazilianische Bank für Deutchsland, os quais formavam um truste. O papel-moeda que seria depositado ou seria tirado de circulação e destruído ou, caso o câmbio fosse favorável, seria utilizado para comprar letras londrinas em favor de Rottschilds & Sons. Em 1899, seria passada a Lei nº 581, de 20 julho de 1899, na qual seria criado um fundo para o resgate e outro para o papel-moeda em circulação.


A Companhia Estrada de Ferro Central do Brasil era uma das companhias ferroviárias que estava no plano de austeridade, cobiçadas pelos credores. Estradas de ferro foram arrendadas e privatizadas.


Já no orçamento de 1899, houve redução de despesas em todos os ministérios (GUANABARA, 1902, p. 253; na época o número era de apenas seis, em tempos onde o estado não era tão titânico).


Por outro lado, Campos Sales fez aquele ajuste fiscal incluindo aumentos de impostos: impostos aumentados para fumo e álcool, com também inclusão de calçados, velas, perfumes, vinagre, conservas e cartas de baralho nos impostos sobre o consumo. Naquele tempo, já se discutia o imposto de renda, mas acabou não vingando. Os impostos sobre o consumo foram passados, embora com alguma resistência. Por causa do imposto do selo, foi apelidado de "Campos Selos". Produtos tributados tinham que ter um selo específico.



Em termos práticos


Com essas medidas, houve um forte corte de gastos. De 1898 para 1898, os gastos foram diminuídos em 55,79 %, mantendo-se em um patamar relativamente estável até o último ano de mandato, em 1902, lembrando bastante o presidente americano Warren Harding (1921-1923).


Fonte: Repertório estatístico do Brasil, quadros retrospectivos n° 1, separata do anuário estatístico do Brasil - Ano V - 1939/1940 (página 139 pelo arquivo digital). Elaboração própria do gráfico.



Já a contração monetária foi em patamar respeitável, chegando a níveis impensáveis nos dias atuais.


Fonte: ONODY, O. A inflação brasileira (1820-1958). [s.l: s.n.]. Elaboração própria do gráfico.



Se o mil-réis não voltou aos patamares do Brasil Imperial, ele sofreu uma apreciação razoável, graças à contração monetária e à política em busca de uma moeda forte, defendida pelo governo.


Taxa de câmbio praticada no mercado livre do Rio de Janeiro. Fonte: Repertório estatístico do Brasil, quadros retrospectivos n° 1, separata do anuário estatístico do Brasil - Ano V - 1939/1940. IBGE. Elaboração própria do gráfico.



Tanto pela valorização da moeda quanto pela redução de sua quantidade na economia, inúmeros bens básicos vivenciaram tendências baixistas nos preços, de forma notável.


Fonte: LOBO, E. M. L. et al. Evolução dos preços e do padrão de vida no Rio de Janeiro,

1820-1930 - resultados preliminares. Rio de Janeiro: 1975, p. 261-262. Elaboração própria do gráfico.



Por outro lado, tanto por causa dos aumentos de impostos quanto pelos estragos profundos do Encilhamento, o PIB per capita continuou com um acumulado negativo.


Variação do PIB per capita, 1889 a 1903, ajustado para inflação e diferenças de preços entre países, mensurado em dólares de 2011.



Conforme disseram Leandro Roque e Ubiratan Iorio no artigo "Os efeitos nefastos de um ajuste fiscal baseado no aumento de impostos":


"Comecemos pelos efeitos mais diretos: um real a mais nas mãos dos burocratas e políticos significa necessariamente um real a menos nas mãos do setor privado, do qual este real foi extraído compulsoriamente.


Em um cenário de recessão econômica, tal efeito nefasto é majorado. Estando o setor privado em retração — por causa da recessão econômica —, o estado irá piorar ainda mais sua situação ao lhe retirar uma fatia ainda maior de sua estagnada riqueza para sustentar a máquina pública.


Aumentar impostos durante uma recessão significa simplesmente aumentar o grau de esbulho sobre a já menor riqueza que está sendo gerada por indivíduos e empresas. Isso, obviamente, irá apenas asfixiar ainda mais o setor privado, exatamente em um momento em que ele necessita de uma maior reserva financeira para se reestruturar e voltar a criar riqueza. Mais impostos significam menos retorno para os investimentos e menos capital disponível para amortizar dívidas, para contratar mais mão-de-obra e para fazer novos investimentos."



Assim sendo, esses aumentos nos impostos acabaram retardando o processo de recuperação econômica do país, o qual se daria somente anos depois.


Foi algo doloroso, já que os bancos que quebraram não receberam nenhum tipo de socorro, além de as medidas de Campos Sales terem sido impopulares.


Embora tenha havido maus percursos ao longo do caminho, parte das empresas grandes que ainda atuam no mercado brasileiro hoje, foram fundadas nessa época: Souza Cruz em 1903, a Leão Junior S.A. em 1901 (atual Matte-Leão), Gerdau em 1901, São Paulo Tramway, Light and Power Company (atual Enel Distribuição São Paulo, que veio de uma estatização de 1947) em 1899 (e Klabin no mesmo ano), entre outros. Os investimentos no setor elétrico também começaram a se desenvolver nessa época, além de ter havido um aumento no investimento estrangeiro direto (FRANCO, 1991, p. 62), dando um ar mais sofisticado para as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. Houve também uma notável alta nas empresas listadas na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (ALDO MUSACCHIO FARIAS, p. 73, 2015).



Um legado


Apesar de sua equivocada medida de aumentar impostos, é inegável que esses ajustes fiscais e monetários formaram as bases para o posterior crescimento econômico que o Brasil teria nos anos pós-Campos Sales. Mesmo assim, o Brasil continuou em essência um país com muitas amarras, inclusive protecionistas. A economia receberia algum mínimo grau de abertura comercial somente nos anos 1990, isto é, muitas décadas depois.


Como ocorreu em muitos governos reformistas, os bons frutos surgiriam somente depois. Assim foi com Fernando Henrique Cardoso, Humberto Castello Branco, assim como governos como os de David Lange, Gerhard Schröder e Margaret Thatcher.



 

Referências e notas:


[1] ALDO MUSACCHIO FARIAS. Experiments in financial democracy : corporate governance and financial development in Brazil, 1882-1950. New York: Cambridge University Press, 2015.


[2] ONODY, O. A inflação brasileira (1820-1958). [s.l: s.n.].


[3] CASTELAR PINHEIRO, Armando; S. GILL, Indermit; SERVÉN, Luis; ROLAND THOMAS, Mark. Brazilian Economic Growth, 1900-2000: Lessons and policy implications. [S. l.: s. n.], 2004. 77 p. Disponível em: https://publications.iadb.org/publications/english/document/Brazilian-Economic-Growth-1900-2000-Lessons-and-Policy-Implications.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.


[4] DE PAIVA ABREU, Marcelo et al. A ordem do progresso: Cem anos de política econômica republicana 1889-1989. [S. l.]: Campus, 1995. 385 p.


[5] MADDISON, Angus. Brazilian Development Experience from 1500 to 1929. [s. l.], 1992.


[6] H. B. FRANCO, Gustavo et al. A economia da república velha, 1889-1930. In: H. B. FRANCO, Gustavo et al. História Contemporânea do Brasil: A Abertura, 1889-1930. [S. l.: s. n.], 2011. v. 3. Disponível em: http://www.econ.puc-rio.br/uploads/adm/trabalhos/files/td588.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.


[7] H. B. FRANCO, Gustavo et al. A década Republicana: O Brasil e a economia internacional, 1888-1900. 1991.


¹ Repertório estatístico do Brasil, quadros retrospectivos n° 1, separata do anuário estatístico do Brasil - Ano V - 1939/1940 (página 32 pelo arquivo digital)

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