Felipe Lange
Dias atrás, eis essa notícia extremamente cômica (coloquei algumas partes em negrito), cujo trecho coloco aqui:
"O presidente da Argentina Alberto Fernández anunciou que assinou um decreto de necessidade e urgência que prevê a intervenção de 60 dias da empresa de cereais Vicentin. Ele também confirmou que o governo enviará ao Congresso um projeto de lei para desapropriar. 'É uma decisão estratégica para a economia nacional', disse o presidente, que garantiu que a empresa 'estava a caminho da falência'.
O Presidente anunciou que todos os ativos do Grupo Vicentin farão parte de um grupo de confiança que será responsável pela YPF Agro. 'Os argentinos precisam ser muito felizes porque estamos dando um passo em direção à soberania alimentar', disse Fernández, falando de um mundo pós-pandemia que colocará a comida no centro da discussão."
Em resumo, o Alberto Fernández (ou Alberto Kirchner?) vai provavelmente estatizar o Grupo Vicentin. A YPF Agro é subsidiária da YPF (sigla para Yacimientos Petrolíferos Fiscales), inicialmente uma estatal de petróleo. Essa estatal havia recebido uma espécie de privatização, mas foi reestatizada logo depois, sendo mais uma vítima da estupidez kirchnerista (além da Aerolíneas Argentinas).
Para quem não está familiarizado, a Argentina é hoje o maior exportador mundial de óleo de soja (além do farelo de soja, que serve como alimento para animais como bovinos e suínos). Em 2018, esses foram os cincos maiores exportadores do mundo:
Em 1 º lugar, Argentina, com 33,7% de fatia do mercado de exportação, no valor de US$ 2,95 bilhões;
Em 2 º lugar, Brasil, com 11,8% de fatia e no valor de US$ 1,03 bilhão;
Em 3 º lugar, Estados Unidos, com 9,87% de fatia e no valor de US$ 863 milhões;
Em 4 º lugar, Holanda, com 5,85% de fatia e no valor US$ 512 milhões;
Em 5 º lugar, Paraguai, com 5,41% de fatia e no valor de US$ 473 milhões;
O Grupo Vicentin hoje é o maior exportador do óleo vegetal do mundo, uma cifra particularmente impressionante. O grupo surgiu em 1929.
Apesar de ter passado por tantas décadas sob uma verdadeira mistura de novela e show de circo, o negócio de soja foi se expandindo ao longo das décadas, com novos investimentos e linhas de produtos, como uma empresa qualquer.
Entretanto, recentemente a empresa esteve com sérios problemas financeiros. Pelo menos desde dezembro do ano passado, o grupo não estava em pleno funcionamento, com trituração e processamento de grãos interrompidos, além de dívidas acumuladas em ao menos US$ 350 milhões, incluindo com o banco estatal Banco de la Nación Argentina (não se sabe se ela quitou alguma dessas dívidas). Como a taxa de juros na Argentina é alta desde pelo menos 2014, os custos de financiar essa dívida se tornaram altos. Mas isso piorou, quando em 2018, os juros anuais foram de 27,25% a 30,25% em poucos dias, chegando ao pico de 90% em meados de outubro do mesmo ano. Na época da publicação dessa notícia das dívidas, os juros estavam em 63% (em dezembro de 2019). Com tudo isso, o grupo pediu falência, com um calote de pelo menos US$ 1,5 bilhão. O calote vergonhoso pelo Macri na dívida externa, assim como a aguda desvalorização cambial, na qual transformou o peso argentino em papel de Banco Imobiliário (o disparo em agosto se deu pelas eleições primárias do Fernández), agravaram de maneira severa a encrenca. Pouco depois, houve revolta contra a expropriação.
A demanda pelo Bitcoin disparou, e o país é um dos poucos países do mundo onde o preço do Bitcoin é muito maior (o outro país é o Irã, que simplesmente recentemente tentou brincar de Plano Cruzado, trocando a moeda e cortando os zeros). Como eu já disse outras vezes, é lamentável ver a negligência por tantos austro-libertários pela criptomoeda (normal haver divergências, afinal o movimento não é um ente homogêneo e centralizado). Ir atrás de fundos atrelados a ouro (por enquanto ainda dá para fazer no Brasil), num país traumatizado pelo corralito, é furada. Ouro físico, não muito diferente, e ainda com risco de comprar adulterado, isso se não for confiscado. Os dólares, refúgio tradicional dos argentinos, também são severamente controlados. O governo, é claro, pode regular as corretoras (como já ocorreu no Brasil, uma regulação medonha por sinal, num país que já é hostil aos investimentos), mas é impossível regular as criptomoedas em si, além de que fiscalizar isso seria extremamente custoso para um país que já está em frangalhos há algum tempo, já que os funcionários são (muito) bem pagos para fazer o trabalho. Os argentinos também podem usar a Nano, outra criptomoeda que surgiu mais recentemente (e que já salvou um venezuelano).
Para piorar, não apenas o Vicentin produzia derivados de soja, mas também outros grãos.
Se isso se concretizar, esperem resultados extremamente humanitários para os argentinos. Apenas imaginem os Correios passando a produzir óleo de soja e outros grãos.
O país, que já foi um dos maiores consumidores de carne do mundo, já corre sério risco de perder essa benção (talvez os veganos comemorem). Daqui a pouco nem uma farinha irão poder mais consumir.
Gradualismo é isso. Cuidado, Bolsonaro.
O lado bom é que o Brasil agora pode se tornar o maior exportador mundial de óleo de soja. E farelo. E os finalistas Paraguai, Estados Unidos e Holanda podem ganhar mais fatia. Pode ser um poder de barganha para lidar com o imperialismo chinês, também.
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