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A deflação voltou

Felipe Lange



Se o ano de 2020 foi tenebroso para as liberdades e economias ao redor do mundo, ele nos trouxe um retorno à deflação de preços.


No passado, mais exatamente na época em que o Brasil ainda era o Império do Brasil, em tempos de padrão-ouro clássico (e mesmo antes, no Brasil Colonial), deflação de preços era uma constante, já que qualquer expansão monetária era domada pelo fato de não existir, ainda, um banco central. O ouro ainda era dinheiro. Nos Estados Unidos, o século XIX ficou coberto por vários anos de deflação de preços. Não é por acaso que aquele foi o período de maior prosperidade e crescimento do país.


Nos tempos de hoje, de papéis flutuantes e bancos centrais, deflação de preços é algo incomum, especialmente em países com moedas mais fracas, como o Brasil. Por incrível que pareça, mesmo com vários países adotando alguns elementos de Teoria Monetária Moderna, algumas exceções notáveis puderam ser observadas, como irei mostrar a seguir.


Os dados abordam a taxa de inflação de preços (ou, em muitos casos, deflação), no acumulado dos últimos doze meses, no ano de 2020.



Alguns casos na Europa


A foto de abertura do artigo é justamente o ano de 2020 para a Grécia. O país, altamente dependente dos setores de turismo e velas, sofreu bastante com a crise, embora seus lockdowns tenham sido menos severos do que de países como Espanha e Alemanha.


Índice de preços na Grécia, acumulado dos últimos doze meses.



O país vem mantendo níveis bastantes civilizados em seu índice de preços, ocorrendo desde a crise de 2008. Os valores são os menores desde o ano de 1968 (e meados de 2015)!


A Espanha, outro país periférico do continente, foi outro que teve seus índices negativos por vários meses.


Índice de preços na Espanha, acumulado dos últimos doze meses.



Tal fenômeno não acontece também desde 2015.


A Itália, dentro do mesmo grupo, também teve seu ano coberto por meses de preços negativos.


Índice de preços na Itália, acumulado dos últimos doze meses.



O país chegou em dezembro com os menores valores desde outubro de 2016.


Eis os dados de Portugal, um caso não muito diferente:


Índice de preços em Portugal, acumulado dos últimos doze meses.



Valores menores desde meados de 2014.


Montenegro, um pequenino país que até 2006 era unido com a Sérvia (quem não se lembra do álbum da Copa do Mundo de 2006 com o nome da seleção "Sérvia e Montenegro"?), também foi outro gratificado por quedas de preços.


Índice de preços em Montenegro, acumulado dos últimos doze meses.



Em 1999, sob conselho de Steve Hanke, o país adotaria o marco alemão, abandonando o dinar iugoslavo. Em 2002, adotaria o euro. Seus preços não caem de tal forma desde o início de 2016.


A Macedônia do Norte é um outro país minúsculo, próximo à Grécia. Houve uma pequena desaceleração nos preços nos meses de abril e maio de 2020:


Índice de preços na Macedônia do Norte, acumulado dos últimos doze meses.



Sua moeda é o dinar macedônio, atrelada ao euro. De 2014 até o início de 2016, o país sofreu deflação de preços. Ponto crítico do regime atrelado, as reservas internacionais do país só têm crescido.


Alemanha, com histórico monetário invejável em relação ao resto do mundo, teve alguns meses com preços descendentes, embora em menor intensidade do que em países como a Grécia.


Índice de preços na Alemanha, acumulado dos últimos doze meses.



São menores valores desde o início de 2015.


Os suíços conviveram com vários meses deflacionários, também. Outro país que rivalizou historicamente com a Alemanha no quesito monetário.


Índice de preços na Suíça, acumulado dos últimos doze meses.



Coincidentemente, o índice de preços também está próximo dos valores vistos no início de 2015.



E na Ásia?


A Coreia do Sul saiu-se bem da traumática Crise Asiática de 1997. Economia altamente dependente de importações e exportações, teve apenas um mês de deflação, com queda de 0,3 % no mês de maio de 2020.


Índice de preços na Coreia do Sul, acumulado dos últimos doze meses.



São valores menores desde o fim de 2019. Sua moeda, o won sul-coreano, hoje um papel flutuante, tem se mantido relativamente estável e forte.


A China, iniciando o ano com uma inflação algo descontrolada, teve uma leve queda de preços em novembro de 2020.


Índice de preços na China, acumulado dos últimos doze meses.



Isso não ocorre desde o fim de 2009. Apesar de hoje os salários na indústria terem crescido bastante (a ponto de hoje os trabalhadores das indústrias chinesas ganharem mais do que os trabalhadores em cargos similares no Brasil), o setor industrial continua sendo mais atraente para se investir do que no Brasil. Como? Para citar algumas razões, basta dizer de que a moeda deles é forte (para melhorar a situação, a moeda local se valoriza desde meados de maio de 2020) e o sistema tributário é menos complexo. O índice de commodities também está nas mínimas históricas.


Hong Kong, por outro lado, vivenciou episódios mais intensos de preços descendentes.


Índice de preços em Hong Kong, acumulado dos últimos doze meses.



O país opera um Currency Board desde 1983. O dólar honconguês é fixado em relação ao dólar americano. Assim, a inflação de preços no país é influenciada pela força do dólar americano. Quanto mais forte o dólar americano, menor tende a ser a inflação de preços em Hong Kong. Tais quedas de preços não são vistas desde julho de 2009.


O caso cingapuriano é parecido. A inflação mais alta vivenciada no ano de 2020 foi em janeiro, com míseros 0,8 % em acumulado dos últimos doze meses.


Índice de preços em Cingapura, acumulado dos últimos doze meses.



O dólar cingapuriano é considerado uma das moedas mais sólidas do mundo, rivalizando com o histórico marco alemão, assim como com o franco suíço. O Monetary Authority of Singapore atrela o dólar cingapuriano em relação às principais moedas do mundo (o que pode ser chamado de uma cesta de moedas). Não há controle de juros, ou seja, os juros flutuam. Tais índices de preços não são vistos desde o meio de 2016.


Os japoneses já convivem com deflação de preços há certo tempo. Nesse ano de 2020, portanto, não foi diferente.


Índice de preços no Japão, acumulado dos últimos doze meses.



O iene japonês, além de ser uma moeda estável, é hoje uma das moedas mais negociadas do mundo. Tais quedas nos preços não são vistas desde o fim de 2009.


Outra surpresa veio do Sudeste Asiático: a Tailândia.


O país pequenino, cuja história guarda inúmeros golpes militares (foram 19 golpes militares desde 1932, quando surgiria a monarquia constitucional no país), é um grande exportador de borracha. Os tailandeses conviveram com dez meses seguidos de deflação.


Índice de preços na Tailândia, acumulado dos últimos doze meses.



A moeda, o baht tailandês, foi mais uma que entrou no regime atrelado (em relação ao dólar americano). Ficou assim por décadas, até que a moeda sofreu com a Crise Asiática de 1997, a qual havia atingido vários países vizinhos. Com isso, ela passou a flutuar. Apesar desse traumático choque, a moeda tem se apreciado desde então, com uma notável estabilidade ao longo dos anos. O dólar americano atualmente custa por volta de 30 bahts, não muito longe dos aproximados 25 bahts por dólar nos anos anteriores à 1997. Não obstante a instabilidade política e o altíssimo setor informal (o que denuncia uma economia ainda com grandes regulações), o país possui grau de investimento, o orçamento do governo está sob controle (com uma dívida de 41,1 % do PIB em 2019), as reservas internacionais são fartas (inclusive aumentaram em 2020), uma população altamente poupadora e o setor turístico é gigantesco (enquanto o Brasil recebeu 6,4 milhões de turistas em 2019, a Tailândia recebeu 39,8 milhões no mesmo ano, isso em um país com 69,83 milhões de habitantes). A taxa de juros está baixa (0,5 % ao ano), mas os juros reais ficaram atrativos graças à deflação de preços.


Não ocorre deflações com tal intensidade desde meados do início de 2015.


Também dentro do Sudeste Asiático, os malaios também respiraram vários meses de queda generalizada de preços.


Índice de preços na Malásia, acumulado dos últimos doze meses.



O minúsculo país, outrora uma colônia do Reino Unido (tornou-se independente em 1957), vivenciou um explosivo e incrível crescimento. Na década de 1960, o país tinha o mesmo padrão de vida do que o Brasil. À partir das décadas de 80 e 90, os habitantes então ficariam bem mais ricos do que os brasileiros. Atualmente a Malásia é um dos países com maior liberdade econômica do mundo, estando à frente de países como Coreia do Sul, Japão, Noruega e França. Como seus vizinhos, a Malásia sofreu na Crise Asiática. As pautas principais de exportação são circuitos integrados, petróleo refinado e óleo de palma. A moeda, o ringuite malaio, existe desde 1967. Assim como nos outros países próximos, a moeda era atrelada ao dólar americano. Com a crise em 1997, o governo entrou em pânico, impondo controles de capitais e fixou a taxa cambial de 3,80 ringuites malaios por dólar americano. Em 2005, a moeda passaria então a flutuar. O país não convive com uma deflação desde o meio do ano de 2009.



No Oriente Médio


Uma pequenina região extremamente rica, sem imposto de renda de pessoa física, com um grande número de residentes estrangeiros e grande exportadora de petróleo. Esse é o Qatar.


Índice de preços no Qatar, acumulado dos últimos doze meses.



Não vimos essas quedas de preços desde o início do ano de 2010. Sua moeda, o rial catarense, é fixada em relação ao dólar americano.


Jordânia é um país bem próximo a Israel e Palestina. Seus preços também caíram em alguns meses de 2020. Atualmente é mais pobre do que o Brasil. É um grande exportador de fertilizantes e medicamentos.


Índice de preços na Jordânia, acumulado dos últimos doze meses.



O dinar jordaniano é fixado em relação ao dólar americano. Os preços não caem desde o fim de 2019.


Israelenses também conviveram com vários meses de preços em queda. Este é um caso de país ocidentalizado circundado por países muçulmanos.


Índice de preços em Israel, acumulado dos últimos doze meses.



A deflação não ocorre desde meados de julho de 2017. O novo shekel israelense, moeda local, surgiria em 1985, após anos de hiperinflação. A moeda opera sob regime flutuante. As commodities no país também estão em baixas históricas.


Oceania


A Austrália é um outro exemplo de país com moeda saudável. Não é por acaso que é atraente para investidores e imigrantes. Passou parte da década de 1970 (e a década de 1980) com inflação continuamente alta, o que acabou somente após medidas de pancadas nas taxas de juros na década de 1980.


Índice de preços na Austrália, acumulado dos últimos doze meses (trimestral).



O segundo trimestre vivenciou uma leve deflação, algo que não se via desde o início de 1998. O câmbio também flutua. Atualmente o país é um dos mais economicamente livres do mundo.



Como vai o continente americano?


O país da folha de bordô também se deparou com dois meses deflacionários: abril e maio.


Índice de preços no Canadá, acumulado dos últimos doze meses.



O Canadá não enfrenta isso desde o fim do ano de 2009. Assim como o dólar australiano, o dólar canadense também flutua.


A Costa Rica é um pequenino país na América Central. O país hoje é mais rico que o Brasil, sendo um dos mais prósperos da América Latina.


Os habitantes do país tiveram deflação de preços nos meses de julho e agosto.


Índice de preços na Costa Rica, acumulado dos últimos doze meses.



Isso não ocorre desde o meio de 2015. O cólon costa-riquenho, moeda local, é atrelado ao dólar, flutuando dentro de limitações impostas pelo banco central.


El Salvador fica próximo à Costa Rica. O minúsculo país da América Central passaria a aceitar o dólar americano como moeda corrente em 2001, então o cólon salvarodenho se despedindo. Os salvadorenhos são grandes exportadores de roupas, atendendo principalmente ao mercado americano.


Índice de preços em El Salvador, acumulado dos últimos doze meses.



Deflação de preços ocorreu durante o ano todo no país, não acontecendo desde o fim de 2016.


Bolívia, um verdadeiro canteiro de informalidade e dotado de uma grande variedade étnica, ganhou um mês de deflação de preços, tendo sido em novembro. A moeda em 2020 pode ser considerada uma das estáveis da América Latina.


Índice de preços na Bolívia, acumulado dos últimos doze meses.



Depois de uma grande hiperinflação na década de 80, a moeda como conhecida hoje, o boliviano, surgiria em 1987, acompanhada de algumas reformas liberalizantes (o que até aumentou sua liberdade econômica). Desde então, a inflação no país ficou em queda livre. O boliviano é atrelado ao dólar americano desde 2008. Quedas de preços não ocorrem desde o fim de 2001. O atual problema envolve suas reservas internacionais, que lastreiam a moeda: elas vêm caindo desde após 2014, que foi justamente quando o gás natural passou a ficar com preços internacionais descendentes. O país é um grande exportador de gás natural.


Inseridos em uma economia baseada principalmente em pescados e petróleo, os equatorianos se depararam com vários meses de quedas de preços. Foram oito meses de deflação em 2020, algo que muitos países desenvolvidos não tiveram.


Índice de preços no Equador, acumulado dos últimos doze meses.



Depois de uma iminente hiperinflação no fim da década de 1990 com o sucre, o país dolarizaria sua economia logo em janeiro de 2000. Em questão de pouco tempo, a inflação de preços e os juros despencaram. O país não se depara com uma deflação desde o começo de 2018. Para um país com bastante instabilidade política, os preços estão se comportando de maneira bastante civilizada.



Conclusão


Com vários setores econômicos reprimidos e choques na oferta e na demanda, o esperado é que a deflação de preços ou, ao menos, uma desaceleração no aumento de preços fosse ocorrer. As deflações de preços foram mais intensas em países sem banco central, como Equador [1], El Salvador, Grécia e Espanha. A exceção interessante foi a Suíça, cuja moeda é historicamente sólida.


No Brasil, encerramos o ano com inflação de preços pior do que em 2019 (acima do centro da meta). Assim, foram-se dois anos encerrados com a inflação acima do centro da meta. Pela primeira vez em mais de 20 anos, a curva entre taxa SELIC e inflação se inverteu. As commodities atingiram recorde histórico. Ainda falta muito, entretanto, para chegarmos ao nível argentino.


De qualquer modo, você que perdeu seu emprego, seu negócio ou teve seu salário reduzido, prefere que os preços das coisas que você consome aumentem ou que caiam?



 

Notas:


[1] O banco central no Equador e em El Salvador ainda existe, mas exerce outras funções, como regulações no sistema financeiro.


 

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