Felipe Lange
No dia 24/08/2020, o Supremo Tribunal Federal, através da ministra Carmen Lúcia, deu um prazo de 48 horas, a partir da noite do mesmo dia, para que o presidente Roberto Campos Neto prestasse informações sobre o lançamento da cédula de R$ 200. O pedido estava envolvido com a ação dos partidos Rede Sustentabilidade, Podemos e PSB, para que essa nota fosse suspensa. Segundo a ação, o lançamento de uma nota de maior valor "facilitaria a lavagem de dinheiro, evasão fiscal e corrupção".
Deixando de lado o fato de que daqui a pouco teremos o Judiciário definindo até a taxa SELIC (será que teríamos um juiz austríaco pedindo fechamento do Banco Central?), o fato é que a resposta que foi dada pelo próprio Banco Central do Brasil foi, no mínimo, muito interessante. Segundo eles (dessa notícia; negritos meus):
"Em resposta ao Supremo Tribunal Federal, o Banco Central alegou que a nova nota de 200 reais 'estaria longe' de ser algo relevante para facilitação de lavagem de dinheiro. Segundo o BC, é mais eficiente aprimorar o controle sobre o 'movimento de numerário em valores mais expressivos, independentemente da denominação'.
Ainda de acordo com o Bacen, seria 'no mínimo duvidoso o argumento de que a nova cédula, por si só, [iria] facilitar os crimes de lavagem de dinheiro e de ocultação de valores, haja vista o baixo valor de reserva que a nova cédula de duzentos reais representará em comparação com as moedas [internacionais]'."
Ou seja, o Banco Central do Brasil admitiu, implicitamente, de que temos uma moeda fraca e com pouca relevância internacional. Fora do território brasileiro, talvez somente os argentinos e venezuelanos aceitem o real.
Então o próprio BCB lançou um gráfico interessante, no qual ele compara os valores em dólares das maiores cédulas de cada país com os da nota de duzentos reais. Só que como os valores estão desatualizados, então decidi eu mesmo fazer o meu quadro, atualizado para o câmbio do dia 30/08/2020 (eu usei os mesmos países que eles escolheram):
Valores em dólares das maiores cédulas de alguns países
Eis o fato: o real é uma moeda fraca e realmente poucos fora daqui se importam com ela. O dólar, por outro lado, por ser a moeda internacional de troca e ainda ser forte, é o preferido por lavadores de dinheiro e corruptos, pois é necessário carregar menos cédulas para se obter o mesmo bem ou serviço. O termo "doleiro" nada mais é que uma pessoa que negocia grandes quantidades de dólares no mercado paralelo (um exemplo clássico é o próprio Alberto Youssef). Quem assistiu a série Narcos sabe muito bem que a moeda preferida pelos narcotraficantes é o dólar americano. Para obter o valor de uma nota de US$ 100, são necessárias quase seis cédulas de R$ 100 ou, futuramente, três cédulas de R$ 200.
Entretanto, ao redor do mundo há exemplos moedas de valor agregado muito maior do que a nota de 200 reais: a cédula de 20 dinares kuwaitianos (65,47 dólares americanos), 10 mil ienes japoneses (94,82 dólares americanos), 10 mil dólares singapurianos (7360 dólares americanos) e 50 mil wones sul-coreanos (42,35 dólares americanos). São países que, não por acaso, possuem moedas fortes. Mas como são moedas menos transacionadas (ainda que mais transacionadas do que o real brasileiro), elas perdem também em relevância para o dólar. Então, por si só, o alto valor real de cada cédula não necessariamente resultará em lavagem de dinheiro, corrupção ou evasão de divisas.
Discussões à parte, agora vamos comparar o valor das maiores cédulas brasileiras que tivemos ao longo da história do real:
(1) Uma nota de R$ 100, no dia 01/07/1994, valia US$ 94.
(2) Vinte anos depois, na mesma data, essa cédula valia US$ 45,45.
(3) Se a nota de R$ 200 fosse criada exatamente no dia 30/08/2020, valeria US$ 37,09.
Ou seja, caso cumpríssemos à risca o objetivo de ter uma cédula de valor que mantivesse o poder de compra de 1994, hoje teríamos que ter cédulas de R$ 600, já que US$ 100 valem quase R$ 600. Em essência, ficamos com quase a mesma família de cédulas do que há 26 anos, já que a inflação acumulada nesse período passou de 500%. O que mudou, em essência, é que perdemos a saudosa nota de R$ 1 (que saudades de quando aquilo valia alguma coisa).
Aos partidos e grupos que fizeram a ação, não se preocupem: entre as 35 moedas mais trocadas no mundo, o real brasileiro é a 20 ª moeda mais trocada, ficando com um percentual de 1,1% (de operação de compra e de venda de reais). A moeda mais trocada, o dólar americano, já consegue um percentual de 88,3%. O euro, 32,3% (como as operações são de troca e venda, então é possível 88,3% e 32,3%). O real brasileiro é menos transacionado do que moedas como o rand sul-africano, rublo russo, peso mexicano e a rúpia indiana. Todas as fontes aqui.
E, para deixar claro: não estou negando a existência de "lavadores" de dinheiro com cédulas de reais (claro que existe!), e sim apenas constatando o fato de que, perto do dólar americano, o real tem muito menos relevância tanto como reserva de valor quanto como meio de troca. Como dito, o real é menos transacionado do que rand sul-africano, peso mexicano, rublo russo e rúpia indiana. E nesse ano isso deve ficar pior para o real, já que a moeda é uma das campeãs em desvalorização com relação ao dólar.
Essa resposta do Banco Central foi bastante interessante, pois ela mostrou que os próprios burocratas do Banco reconhecem que o real brasileiro é uma moeda fraca, além do fato de que hoje vivemos em tempos de moedas fiduciárias e de que as pessoas que fizeram a petição provavelmente são ignorantes pelo menos sobre como funciona o atual arranjo monetário.
Como o dólar é a moeda internacional de troca, mesmo que, por exemplo, um brasileiro compre trigo de um argentino, em algum momento irá usar dólares: o comprador irá trocar os reais pelos dólares; feito isso, ele irá transferir esses dólares para a conta do vendedor argentino de trigo. E então o vendedor de trigo escolhe manter esses dólares na conta ou trocar por pesos argentinos. E então a remessa de trigo é feita. Ou seja, nem o peso argentino, nem o real brasileiro, são moedas internacionais de troca. Somente o dólar americano é.
Se ainda estivéssemos no século XVIII, aí sim poderíamos se falar de guardar reais como reserva de valor (sim, o termo "real" foi utilizado na Espanha e Portugal para moedas de ouro, assim como nas moedas cunhadas no Brasil Colonial), quando ainda vivíamos sob um padrão-ouro. Naqueles tempos coloniais, 1200 réis equivaliam 1/8 de ouro 22k (ou 3,586 gramas de ouro com 91% de pureza). Hoje isso vale por volta de R$ 1240,86. Quanto valia isso em 1 º de dezembro de 1998? Por volta de R$ 40,19.
Agora, guardar pilhas de papel-moeda que desvalorizam o tempo todo (em apenas 26 anos, a nossa moeda sofreu uma inflação acumulada de mais de 500%), como reserva de valor? Não. Só se, de repente, o real voltasse ao padrão-ouro.
Imagem retirada daqui.
ATENÇÃO! Este artigo não possui nenhum intuito de aconselhar a fazer quaisquer investimentos, e sim o objetivo de ser um artigo de Ciência Econômica e com elementos jornalísticos, além de expor fatos e algumas eventuais opiniões do autor! Assim, o autor do artigo se exime de responsabilidades sobre quaisquer investimentos feitos pela pessoa que lê o artigo.
Sugestões de leitura:
Comments