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Uma história econômica do sistema de saúde americano – Parte 1

Atualizado: 9 de jun. de 2020

Da era pré-Flexner até a Grande Depressão

Michel Accad


Pergunta: Qual é o ponto inicial na história do sistema de saúde americano?


Michel Accad: O sistema de saúde americano nasceu em 1910, da chamada “reforma flexneriana” na educação médica e as leis de licenciamento resultantes.



Pergunta: Por que esse é o ponto inicial?


Michel Accad: Antes dessa época, a medicina nos EUA era essencialmente desregulada. Qualquer pessoa podia abrir uma clínica médica, e muitos o fizeram com pouco treinamento.


Pacientes tinham completa liberdade para obter cuidados médicos de quem eles desejassem. Quando tal liberdade existe por completo, ninguém pode realisticamente falar sobre um “sistema”.



Pergunta: Quais eram as características principais desse período “pré-histórico”?


Michel Accad: Haviam formas de cuidados médicos competindo. Medicina “regular” continuava como tradição emanando de instituições europeias e escolas médicas. Isso era ostensivamente representado pela American Medical Association (AMA).


A forma regular de atendimento médico tendia a estar mais disposta a intervenções agressivas (empolamento, sangrias e purgantes tóxicos), mas com o tempo, também incorporava cada vez mais o conhecimento científico ao seu modo de prática. A cirurgia fazia parte da medicina comum e as técnicas cirúrgicas estavam melhorando rapidamente na última parte do século XIX.


Outras formas de assistência médica, como o ecletismo, o fitoterapia e a homeopatia, tendiam a ser menos propensas a tratamentos agressivos, e cada uma possuía sua própria filosofia diagnóstica e terapêutica.


Havia uma infinidade de escolas médicas, e a maioria delas eram propriedade privada. Em muitos casos, o currículo durava um ou dois anos após o ensino médio.


Dado este grande número de escolas, os Estados Unidos tinham o maior número de médicos per capita do mundo.



Pergunta: Isso parece uma situação muito caótica. Os pacientes estavam confusos?


Michel Accad: É difícil objetivamente mensurar como a população sentia sobre os cuidados médicos nessa época, mas nós podemos documentar que nas últimas décadas do século 19, as pessoas pareciam favorecer a assistência médica que abrangia descobertas científicas como a teoria microbiana das doenças.


O número de escolas proprietárias declinou, e essas que sobreviveram o fizeram melhorando seus padrões. Hospitais e instituições que ofereciam atendimento mais científicos floresceram. Um exemplo instrutivo de como pessoas comuns eram permitidas a distinguir e recompensar cuidados de alta qualidade é o dos primeiros anos da Clínica Mayo.



Pergunta: Quem era Flexner e o que ele realizou?


Michel Accad: Abraham Flexner foi uma importante figura no ativismo educacional que foi contratado pela Carnegie Foundation, para estudar o estado da educação médica nos Estados Unidos. Ele já havia publicado um relatório crítico sobre o ensino superior em faculdades e universidades.


Flexner e líderes da Carnegie Foundation ficaram impressionados com os recentes avanços científicos e tecnológicos e desejaram promover uma filosofia de "administração científica" de assuntos humanos e sociais, uma filosofia que caracteriza a era progressista. A pedido do Conselho de Educação da AMA, a Fundação Carnegie decidiu financiar uma pesquisa de educação médica e contratou Flexner para a tarefa.


Flexner passou dois anos visitando escolas de medicina em todo o continente e publicou seu influente relatório sobre Educação Médica nos Estados Unidos e no Canadá em 1910. Após a publicação do relatório, Flexner continuou engajado ativamente na promoção das recomendações do relatório.



Pergunta: O que o Flexner encontrou e o que o relatório do Flexner pediu?


Michel Accad: O relatório é descrito como “muckraking” [nota do tradutor: ato de divulgar informações escandalosas de maneira dissimulada] por Kenneth Ludmerer, um proeminente historiador da educação médica. Exceto por algumas escolas acadêmicas que ele elogiou, Flexner condenou o estado da educação médica em termos incertos.


O relatório pedia o fechamento de todas as escolas de medicina que não demonstrassem um compromisso com os padrões científicos e não incorporassem uma prática de laboratório. Ele também pediu que as leis de licenciamento exigissem padrões educacionais mais altos. O relatório foi consonante com os objetivos da AMA, estabelecidos em 1847, ostensivamente para fortalecer a educação médica e reduzir o número de médicos. De fato, Flexner colaborou estreitamente com os membros da AMA, e a organização forneceu-lhe as conclusões de uma pesquisa que já havia realizado e na qual ele contava para escrever seu próprio relatório, supostamente independente.



Pergunta: Que efeito o relatório teve?


Michel Accad: O relatório de Flexner é frequentemente creditado por colocar em movimento a reforma na educação médica, mas isso é errôneo. Grandes melhoras na educação já tinham acontecido em muitas instituições acadêmicas nas duas décadas anteriores, e as inovações e padrões mais altos estavam se espalhando ao longo do país antes do relatório.


O principal efeito do relatório foi em mudar a opinião pública e política sobre a educação médica e influenciar a implementação de leis de licenciamento restritivas. A mudança no sentimento foi facilitada pela influência política e financeira de organizações tais como Carnegie Corporation e Rockefeller Foundation.


Na sequência do relatório, e sob os esforços de lobby da AMA, estados rapidamente estabeleceram legislações médicas para regular a emissão de licenças médicas. Daí em diante, as licenças só seriam dadas aos graduados das escolas que atendessem aos critérios estabelecidos pelo relatório do Flexner. Essas escolas de medicina teriam que ser acreditadas pelo Liaison Committee on Medical Education, uma joint venture da AMA e sua aliada próxima, a American Association of Medical Colleges.



Pergunta: O que aconteceu depois?


Michel Accad: Do ponto de vista econômico, o que aconteceu a seguir foi um período de inflação de preços grave que ocorreu de forma rápida e dramática, nos serviços médicos. A situação era tão grave que, em 1925, foi organizado um Committee on the Costs of Medical Care (CCMC) para abordar a questão.


O CCMC também foi financiado pela Carnegie Corporation e por várias outras fundações privadas, como a Rockefeller Foundation. O comitê recebeu assistência material da AMA, da American Hospital Association e de outras organizações profissionais importantes, bem como de muitas agências governamentais, incluindo o National Bureau of Economic Research. Numerosos relatórios foram emitidos ao longo dos anos seguintes, e esses foram compilados em 1932 em um grande volume intitulado The Costs of Medical Care.


Pergunta: Quais foram as descobertas desse comitê?


Michel Accad: O CCMC confirmou que os custos dos cuidados médicos aumentaram dramaticamente nos anos anteriores. O comitê também descobriu que as disparidades no atendimento médico aumentaram, com o acesso aos cuidados médicos nas áreas rurais e pobres sendo particularmente problemático.



Pergunta: Qual foi a causa atribuída?


Michel Accad: O comitê erroneamente atribuiu a causa da inflação dos preços médicos aos avanços científicos e tecnológicos, ao aumento do uso de cuidados hospitalares associados a esses avanços e ao aumento associado nos custos de treinamento médico e suprimentos médicos.



Pergunta: Isso soa razoável. Por que é errôneo?


Michel Accad: Em geral, avanços científicos e tecnológicos caros tendem a serem adotados amplamente quando produzem melhorias proporcionais em produtividade ou bem-estar. Em tais casos, os aumentos nos custos não são vistos como causadores de uma crise, uma vez que são compensados pelos benefícios que proporcionam. O fato que a crise teve como culpa os avanços tecnológicos sugere que outros fatores estavam em jogo.



Pergunta: Quais foram esses fatores?


Michel Accad: Um fator foi a forma contundente pela qual a medicina “irregular” foi desacreditada e a medicina flexneriana promovida. O outro fator foi o efeito das leis de licenciamento sobre a oferta e a má distribuição de médicos.



Pergunta: Não é o caso que o público percebeu que uma medicina mais científica era melhor e valia a pena aprovar leis de licenciamento?


Michel Accad: É difícil estabelecer se o público pode articular com precisão seus desejos através da cabine de votação.


É um fato, porém, que as leis de licenciamento reduzem a escolha econômica dos pacientes, incluindo a escolha de fazer determinações pessoais em relação aos riscos e benefícios dos cuidados.


Quando o cuidado médico não acreditado é vigorosamente denunciado como “não médico” pela liderança acadêmica e política, não é surpresa que o público venha a acreditar da mesma forma.



Pergunta: Não é uma boa coisa eliminar tratamentos inferiores e encorajar um melhor treinamento médico?


Michel Accad: Somente se você pensa que ficar sem tratamento é melhor do que um tratamento médico inferior.


Também devemos ter em mente que muitos tratamentos médicos dispendiosos, considerados superiores na época, podem não ter produzido melhores resultados do que formas alternativas de tratamento menos dispendiosas.


Além disso, tratamentos para casos simples, como pequenas feridas e fraturas, poderiam ter sido tratados de forma razoável e barata por profissionais com menos treinamento do que um médico licenciado. O argumento é comumente feito hoje de que os não-médicos, como os profissionais de enfermagem e assistentes do médico, podem realizar com sucesso e segurança muitas tarefas até agora reservadas a médicos licenciados. Mas essa ideia foi completamente descartada pelo CCMC, que afirmou que:


“O médico é o excelente praticante da medicina. A necessidade e o valor de seu serviço o coloca acima de todos os outros. Só ele, de todos os tipos de médicos nos Estados Unidos, é permitido por lei diagnosticar e tratar todas as doenças e condições e usar (com algumas pequenas exceções) qualquer forma de técnica diagnóstica ou terapêutica que considere necessária, desejável e dentro de sua habilidade profissional. (p. 195) ”



Pergunta: Isso é bem um elogio!


Michel Accad: O conceito de paternalismo médico vem à mente.



Pergunta: Não há uma controvérsia sobre o efeito de leis de licenciamento na oferta de médicos?


Michel Accad: Alguns têm argumentado de que as reformas flexnerianas não tiveram um maior impacto na disponibilidade de médicos. Mas enquanto é verdade que a oferta de médicos estava decaindo antes dos anos 1910, o declínio ficou ainda maior depois das leis de licenciamento terem sido impostos. E uma vez que a população estava crescendo rapidamente, o número de médicos per capita decresceu até 1930.


Além disso, muitas das faculdades de medicina que foram fechadas estavam em áreas insuficientemente servidas. Em particular, das sete faculdades de medicina afro-americanas existentes na virada do século, apenas duas sobreviveram às reformas de Flexner, e todas, exceto uma das faculdades de medicina das mulheres, foram fechadas.



Pergunta: Como você resumiria a causa do aumento nos custos médicos?


Michel Accad: A causa da crise dos custos médicos foi principalmente as medidas legais que reduziram o fornecimento de médicos e concederam o monopólio e uma grande autonomia a uma forma de assistência médica tradicionalmente inclinada a favorecer intervenções médicas, por mais benéficas que essas intervenções pudessem ser para aqueles capazes de adquiri-los. Outras intervenções regulatórias na área da saúde também tiveram um papel importante.


Não devemos dizer que os avanços tecnológicos foram per se a causa da inflação sustentada nos preços médicos observada após a reforma de Flexner.



Pergunta: Qual foi a principal recomendação do comitê para resolver o problema?


Michel Accad: A principal recomendação emitida pelo comitê foi trabalhar em direção a um programa nacional de saúde. De fato, em uma recente revisão do relatório, o Dr. Thomas Gore observa que:


“A declaração mais citada do relatório indicou que o problema básico na assistência médica era 'não o sistema, mas a falta de um sistema' para organizar o atendimento. ”


Esse ponto de vista continua prevalente até hoje.



Pergunta: Como os médicos se saíram durante esse tempo?


Michel Accad: O relatório do CCMC mostra que os médicos se saíram bem economicamente e, como um grupo, pertenciam a uma faixa de renda alta.

A renda bruta do médico constituía cerca de um terço de todos os gastos com saúde. O relatório justificava o aumento da renda dos médicos com base no aumento do tempo de treinamento, nos custos mais altos de fazer negócios e na quantidade de cuidados de caridade fornecidos pelos médicos, além de outros fatores, como o aumento da especialização.


Cirurgiões se deram muito bem. Muitos hospitais estabelecidos e operados, e naqueles dias, os honorários do cirurgião chegavam a quase metade da conta do hospital. Mas isso não durou muito.



Pergunta: O que aconteceu depois?


Michel Accad: Após o boom da década de 1920, ocorreu a grande depressão. Os pacientes reduziram drasticamente seus gastos médicos e os hospitais se viram operando com metade da capacidade.


Hospitais e outros líderes de saúde, incluindo membros do American College of Surgeons, começaram a procurar ativamente modelos que fornecessem fontes alternativas de receita.


 

Notas:


(1) Learning to Heal, página 167


(2) Shyrock, que viu o declínio no fornecimento de médicos de maneira favorável e alegou que ocorreu, reconheceu dados conflitantes sobre o número e a proporção real de médicos (ver nota 115). Embora o número total de médicos e de graduados possa ter sido restaurado em 1930, em comparação com 1910, a população dos EUA cresceu acentuadamente durante esse período e o número de médicos per capita declinou claramente. Ludmerer, que cita a Shyrock para os dados de fornecimento, acredita que o número total de médicos não diminuiu acentuadamente, e ele desconsidera a importância econômica de uma redução no número de médicos per capita.

 

Referências:


- Davis, Michael M. and C. Rufus Rorem. The Crisis in Hospital Finance and Other Studies in Hospital Economics. Chicago: University of Chicago Press, 1932.


- Falk, I.S., C. Rufus Rorem, and Martha D. Ring. The Costs of Medical Care. Chicago: University of Chicago Press. 1932.


- Hamowy, Ronald. The early development of medical licensing laws in the United States, 1870-1900. Journal of Libertarian Studies (3) 1:73-119. 1979.


- Lundmerer, Kenneth. Learning to Heal: The Development of American Education. New York: Basic Books. 1985.


- Shyrock, Richard H. Medical Licensing in America, 1650-1965. Baltimore: The Johns Hopkins Press. 1967.

 

[Nota do tradutor: esse artigo é a primeira parte da entrevista que o cardiologista Michel Accad, seguidor da Escola Austríaca de Economia, fornecida em seu site Alert and Oriented. A primeira parte original pode ser conferida aqui.]

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