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Brasil colonial: potência econômica

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    Felipe Lange
  • 19 de set.
  • 18 min de leitura

Parte 1: Primórdios e proezas

Felipe Lange

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O que hoje conhecemos como o Brasil tem uma história extremamente rica e complexa (e qual lugar não tem?), que consegue nos explicar a terra de onde viemos, valores culturais e muito mais.


A América Portuguesa foi regida basicamente pelas chamadas Ordenações do Reino, muito embora nem sempre as leis eram levadas ao pé da letra, porque os costumes locais (inclusive envolvendo os nativos americanos) muitas vezes estavam acima das legislações, com bastante autonomia para as vilas. Dividido em cinco livros, apenas os livros IV e V eram aplicados aos moradores na região, tratando respectivamente dos direitos de família, direito das coisas, das obrigações e das sucessões e ao direito penal. As terras funcionavam sob um regime chamado de sesmaria, que veio da Lei das Sesmarias de 1375, pelo rei Fernando I de Portugal. Esse tipo de arranjo, exclusivo para Portugal e América Portuguesa, durou por bastante tempo na colônia americana, sendo formalmente extinto pela Resolução Número 76 de 17 de julho de 1822.


O regime também era influenciado pelas bulas papais emitidas para a Ordem de Cristo (você já reparou nas bandeiras das caravelas que vinham para o atual Brasil?) no século XV. Essas expedições eram também relacionadas à missão cristã de evangelizar os demais povos e espalhar a palavra para outras terras. Um tempo depois, a Ordem repassou essas terras para a própria Coroa. Pelo arranjo jurídico, essas terras deveriam ser obrigatoriamente distribuídas para mais cristãos. Com muita terra disponível e sem nenhum uso, os preços eram artificialmente nulos. Quando negociados, então, continuava baratinho. Para ter algum valor econômico, essas terras tinham de ser desmatadas. Todavia, o custo da mão de obra era alto. Embora em tese as sesmarias devessem ser ocupadas e povoadas constantemente para terem validade jurídica durante o regime de concessão, na prática essa interpretação era bastante flexível e terras de milhares de acres poderiam ser consideradas como ocupadas e povoadas com algumas cabeças de gado e um abrigo construído.


Nos matrimônios, era extremamente comum que o dote do casamento fosse utilizado como investimento para futuros negócios, e as mulheres tinham um protagonismo familiar muito maior do que se imaginava, uma tradição que veio dos povos Tupi.


Já com São Vicente sob a condição de vila, o primeiro engenho de açúcar seria construído ali em 1533. A compra de equipamentos foi possível pela associação dos riquíssimos Fugger com o Erasmo Schetz.


Com a monarquia portuguesa já em dificuldades financeiras, tal situação piorou quando o rei teve de financiar a expedição de Martim Afonso de Sousa (sim, o mesmo que você já deve ter visto nas aulas na escola) e sem a esperada remessa de prata. Se hoje os governos em apuros financeiros normalmente fazem um regime de concessão ou parceria público-privada, no caso português foi escolhido o regime de capitanias hereditárias (eu não entendia nada aos meus 9 anos, mas não se preocupe, você irá entender agora).


De acordo com o historiador Jorge Caldeira, em sua obra "História da Riqueza do Brasil" (2017, p. 56):

"O segredo estava no equilíbrio adequado entre o que o rei cedia ao interessado e o que reservava para si mesmo como autoridade. A parte cedida ficava registrada numa carta de doação: o domínio sobre uma porção de terra (a capitania); as regras de transmissão desse domínio para herdeiros (por isso, hereditárias); os poderes de governo reservados ao donatário em relação ao controle da justiça e da vida civil, exercidos como autoridade no lugar do rei. Já a parte da autoridade partilhada era definida em outra carta, o foral. No princípio, o termo designava uma concessão régia pela qual os moradores das vilas ficavam, num território delimitado, diretamente sob a autoridade do rei e fora da jurisdição de senhores feudais ou clérigos. A instituição foi adaptada para o caso brasileiro com algumas variações. Juntamente com a capitania, o rei concedia ao donatário os poderes de criar vilas ou escravizar nativos para o cultivo da terra. Além disso, o donatário ficava isento de parte dos impostos a que estaria obrigado, como o dízimo e a contribuição para a Ordem de Cristo assim como das taxas incidentes no comércio de pau-brasil e pescados. Todavia, os demais impostos deveriam ser pagos ao rei, de modo que a ideia central era assegurar uma renda para o Tesouro, evitar despesas e, ainda assim, estabelecer no território alguma espécie de governo submetido a Lisboa. Como tudo isso era dado de graça, não faltaram interessados na doação das capitanias. Porém, com as cartas nas mãos, esses interessados teriam de viabilizar o governo nos novos domínios, o que implicava investir dinheiro na montagem da operação a fim de colher lucros. Quando começava a produção e vinham os lucros, os operadores pagavam impostos ao donatário, que por sua vez repassava ao rei parte do dinheiro. No Brasil, surgiram interessados em 15 fatias – e cada um deles experimentou fórmulas próprias para transformar os dois pedaços de papel em governo efetivo e dinheiro nos bolsos."


Sete das quinze capitanias estavam já ocupadas por franceses e seus aliados nativos (já jogou Age of Empires III?), impossibilitando qualquer grande empreitada. Das poucas capitanias que sobraram para os portugueses e seus aliados nativos, a Capitania de Pernambuco foi a mais bem-sucedida, governada pela Beatriz de Albuquerque (1517 - 1584), viúva de Duarte Coelho. A produção de açúcar começaria ali também, o que propiciou riqueza tanto para a donatária quanto para os que moravam na então vila de Olinda.


Embora muitas regiões brasileiras fossem ser chamadas de capitanias até o início do século XIX, a natureza delas mudaria já no século XVI com a criação do governo-geral, pelo Dom João III. O rei fez isso comprando a capitania da Bahia, indenizando a família do finado donatário Francisco Pereira Coutinho. Não houve a transferência de privilégios para nobres ou clérigos, e as terras eram negociáveis como mercadorias, cuja herança era igualitária entre todos os herdeiros (como era para o povo na metrópole de Portugal), um choque para o restante da Europa daquele período. O sistema feudal teve menos penetração na América Portuguesa. O primeiro governador fora Tomé de Sousa, que continuaria a articular as suas alianças com os Tupi, com aval de João III.


Novidade também seria o Alvará de 20 de março de 1570, já sob o jovem rei Dom Sebastião I, que proibia a escravidão dos povos nativos no Brasil, com exceções em caso de "guerra justa" (a América Espanhola também adotaria o mesmo caminho). Essa façanha foi possível graças ao padre jesuíta Manuel da Nóbrega, cuja interpretação foi de que os Tupi eram pessoas dotadas de liberdade natural, embora fossem inocentes (ou seja, não conheciam a palavra de Deus). Tempos depois, já sob a União Ibérica, Filipe II proibiu qualquer forma de escravização dos povos indígenas, além de anular todos os contratos referentes à propriedades (lembre-se de que os escravos eram considerados propriedade). Mesmo assim, houve tensões nos colonos, que resistiram de toda forma possível. No Rio de Janeiro, houve ameaça de ataque aos colégios jesuítas, ao passo que em São Paulo, as pessoas simplesmente descumpriram a lei de forma sumária. Na vila, chegara o desembargador Manuel Jácome Bravo, que queria averiguar a situação. Não durou muito, pois a sua residência começou a ser atacada por flechas, e então ele saiu dali. Em 1617, ele retornaria a Portugal. Em 1611, foi basicamente promulgada uma legislação que voltava ao que era antes. Assim, os abusos contra os nativos americanos continuaram comuns por séculos. Ainda, tanto por causa disso quanto pela escassez de moeda na América, houve uma maior demanda por escravos de origem africana, que não constavam na proibição.


A escassez de moeda também se dava ao fato de o mercantilismo ter entrado em moda: a norma era que a Metrópole se entupisse de moedas metálicas, e não a colônia. Só que, com essa explosão na oferta monetária nessas regiões, houve inflação de preços. Assim escreve Murray Newton Rothbard, em sua obra "Economic Thought

Before Adam Smith: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought Volume I" (página 214):


"A aparente prosperidade e o poder reluzente da Espanha no século XVI provaram ser uma farsa e uma ilusão a longo prazo. Pois foram alimentados quase completamente pelo influxo de prata e ouro das colônias espanholas no Novo Mundo. A curto prazo, o influxo de ouro em barras proporcionou aos espanhóis um meio pelo qual podiam comprar e desfrutar dos produtos do restante da Europa e da Ásia; mas, a longo prazo, a inflação de preços eliminou essa vantagem temporária. O resultado foi que, quando o influxo de moeda secou, ​​no século XVII, pouco ou nada restou. Não apenas isso: a prosperidade do ouro em barras induziu pessoas e recursos a se deslocarem para o sul da Espanha, particularmente para o porto de Sevilha, onde a nova moeda entrou na Europa. O resultado foi um investimento precário em Sevilha e no sul da Espanha, compensado pela paralisação do potencial de crescimento econômico no norte."


As moedas metálicas ficavam somente nos grandes centros urbanos como Salvador, ainda assim concentradas para as pessoas mais abastadas. Dessa forma, o escambo ficava como coisa comum e aceita, que se tornou um arranjo bastante complexo, com compromissos de pagamento e arranjos financeiros no meio. Formou-se uma complexa e intensa divisão de trabalho, na qual os empréstimos eram quitados com a promessa de retorno em safras, assim como benesses e outros bens e serviços. Chegou a ocorrer uma forma rudimentar do hedge (ou, na Língua Portuguesa, cobertura ou limite), já que era comum que esses produtores investissem em outros ativos para lidar com essas flutuações de mercado.


Por causa disso, tem-se o exemplo da relação de um mascate (termo usado para se referir aos comerciantes) com um senhor de engenho, conforme relatado a seguir (A fronda dos mazombos, Evaldo Cabral de Mello, página 126):


"Em poder desses forasteiros ou mascates residia todo o comércio; eles portanto eram os que supriam os engenhos e também os únicos que recebiam caixas de açúcar. No fim das safras, cada senhor de engenho devia uma soma considerável ao mascate que o tinha suprido, e então este inflexível credor o apertava, dando-lhe a escolher ou pagar no ano seguinte o duplo do que devia, ou entregar o açúcar a quatrocentos réis a cada arroba, açúcar este que ele remetia a seus correspondentes na Europa a 1$400 réis. Qualquer destes dois negócios arruinava infalivelmente o miserável agricultor, mas tendo os mascates monopolizado a compra do açúcar, outros remédios não tinham os tristes pernambucanos que se sujeitarem à vontade do opressor europeu. Desta forma, em poucos anos tronaram-se os mascates grossos capitalistas."


Em meio a isso, tivemos o surgimento da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (Geoctrooieerde Westindische Compagnie), uma empresa privada que também tinha o governo da República dos Sete Países Baixos (erroneamente chamada de Holanda) como um dos acionistas, além de privilégios governamentais. A empreitada invadiu a cidade de Salvador em 1624, saqueando e ocupando a capital. Inicialmente evitaram o uso de mão de obra escrava para todo o processo produtivo da cana-de-açúcar, depois acabaram mudando de ideia (e deixando a moral um pouco de lado), e entrando no comércio. Nisto, também surgiu outro contraste entre os dois povos, de forma curiosa: a venda de pessoas escravizadas a crédito. A taxa de juros era alta, de 4 % mensais (quando vendidos pelos comerciantes privados). Os senhores de engenho ingenuamente pensaram que essas condições de pagamento e de dívida seriam aquelas nas quais eles estavam acostumados: pedido de isenções para o rei português, exceções e outras amenidades com relação à execução da dívida. Mas, para os neerlandeses, da República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, o que valia era o contrato privado. Por este motivo, o número de endividados explodiu, com muitos indo parar nos tribunais e chegando até serem presos. Não deu muito certo, porque até os devedores presos tinham de ser custeados pelos credores, então era mais negócio renegociar a dívida e então tirá-lo de lá (Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, Joan Nieuhof, páginas 110-111).


Como também sempre houve resistência local e o empreendimento começava a dar muitos gastos para o governo (diferentemente do que ocorria antes sob Portugal, que acabou terceirizando os empreendimentos coloniais), os neerlandeses saíram em definitivo por meio de acordo com os portugueses, o Tratado de Haia de 1661. Neste período, também, chegaram as primeiras correntes migratórias de pessoas vindo do Brasil para a Nova Amsterdã (atual Nova Iorque). Uma outra parcela dos neerlandeses foi para Barbados, onde levaram os conhecimentos adquiridos sobre o cultivo da cana, deixando aquela ilha próspera pouco depois. O protagonismo do açúcar era perdido, então se concentrando no Caribe.


Voltando ao Brasil, do século XVI em diante, a expansão territorial se deu em grande velocidade, graças às alianças entre os colonizadores e os nativos Tupi (frequentemente com casamentos entre as mulheres nativas e os portugueses, incluindo poligamias), já que os indígenas tinham bastante conhecimento de uma terra que era tão estranha aos portugueses, cheia de vegetação nativa de biomas diferentes e animais perigosos (os germânicos Spix e Martius, no século XIX, reclamavam bastante dos mosquitos). Embora vindos de um país católico apostólico romano e com a questão da monogamia e da castidade, muitas vezes isso não era levado a sério pelos portugueses que ali chegavam, muitos deles solteiros (diferente das outras ondas migratórias que se seguiram séculos depois). Do século XVII em diante, entretanto, essas alianças já não eram mais bem vistas, embora a miscigenação por si só nunca tenha acabado no território brasileiro (e que, por outro lado, foi extremamente combatida nas colônias inglesas). As alianças com os indígenas para a obtenção de escravos não eram mais necessárias. Apesar disso tudo, a relação era tão forte que, até o século XIX, todas as expedições militares dentro do atual Brasil - inclusive contra outras tribos -, contavam com participação dos nativos americanos. O interior (que era chamado de sertão), embora já com várias expedições e povoados e com atividade econômica, não era tão ocupado quanto as regiões litorâneas, o que consequentemente requeria suporte dos povos locais, frequentemente. Exemplo de legado dos indígenas, a técnica de se realizar as queimas para fins agrossilvipastoris, além de estar prevista em lei federal, ainda é feita mesmo nos dias atuais.


Diferentemente do que pode se supor, a economia nesse período era muito mais do que uma mera "economia de subsistência". Isso não se aplicava nem mesmo aos nativos Tupi, já que a aquisição de utensílios de ferro por eles (a metalurgia era desconhecida) possibilitou o aumento de produtividade e de excedentes de produção, na prática adquirindo bens de capital.


Conforme afirma o Jorge Caldeira, na página 111 do mesmo livro:


"Nada disso, porém, faz muito sentido em face das descobertas mais recentes possibilitadas pelas novas metodologias. Uma tradução sociológica mais acurada dessas descobertas tem de levar em conta uma gama de frações acumuladoras. Havia aquelas realizadas por agentes que funcionam como produtores coletivos (no caso dos excedentes gerados por nativos). Mas a maior fração da produção econômica colonial cabia aos produtores independentes, donos de seus meios de produção e tomadores de risco – ou seja, aos empreendedores. Do ponto de vista sociológico, os estudos quantitativos mostram que a unidade produtiva mais comum era a pequena posse (largamente dominante) ou propriedade, seja individual ou familiar, em múltiplas formas: um curral de gado no sertão, uma pequena roça próxima de uma vila, os ganhos nas caravanas de trocas com nativos, tecelagem artesanal, venda de quitutes nas ruas nas vilas maiores, pequeno comércio, transporte, trabalhos especializados (fundição de ferro, carpintaria, construção etc.). Até o século XVII, a regra praticamente geral era a de produzir tudo isso sem o emprego de escravos nas vilas espalhadas pelo vasto território da aliança. Apenas nos maiores centros exportadores havia a presença da mão de obra cativa e mais cara em trabalhos competitivos com os empreendedores independentes. Com tal retrato econômico e sociológico se pode avaliar de outra forma o papel dos diversos governos atuantes no período. "


Apesar de Portugal ainda ter mantido certa relevância, esse ápice começava a se distanciar no século XVII. A quantidade de impostos coletados estava em queda, a expulsão dos neerlandeses foi custeada majoritariamente pelos próprios moradores, além dos altos custos da Guerra da Restauração (1640 - 1668), quando a União Ibérica acabaria de vez e os espanhóis de Habsburgo não mais governariam Portugal. Nessa, os impostos e a fiscalização aumentavam sobre o Brasil. A metrópole estava em queda, enquanto a América Portuguesa continuava produzindo riqueza o bastante para custear a máquina governamental de Lisboa, não obstante as tentativas lisboetas de regular a economia colonial. Também, aumentou-se o número de credores do governo, ou seja, pessoas que emprestavam dinheiro para o estado português, recebendo juros em troca (obviamente, custeados por impostos).



Bancos proibidos e a diversidade econômica luso-brasileira


Enquanto o Brasil já tinha o primeiro hospital em 1542 (Santa Casa de Misericórdia de Santos), os atuais Estados Unidos somente teriam o seu primeiro em 1732 (Bellevue Hospital). Os doentes que não podiam custear podiam se tratar gratuitamente, já que as Santas Casas recebiam doações, inclusive de ricos que queriam fugir de impostos (porque havia isenção para as instituições religiosas). Em contraste, como não era permitida a construção de bancos (o primeiro banco americano já existia em 1733 nos atuais Estados Unidos) e havia a tal isenção de impostos, as Santas Casas também funcionavam como instituições financeiras, financiando empreendimentos de forma totalmente privada, inclusive o setor agropecuário (e também, lamentavelmente, a compra de escravos), com juros. Exemplo foi a Santa Casa de Misericórdia de Salvador. Mesmo durante a invasão neerlandesa, a instituição recebeu vultosos recursos, de forma privada, o que permitiu que se financiassem muitos empreendimentos, mesmo naquela situação adversa de então.


Isso sem praticamente nenhum tipo de subsídio e muito menos algo como crédito direcionado. E hoje no Brasil há quem pense que o agronegócio, cheio de tecnologias produtivas, não seja capaz de viver sem subsídios governamentais...


Todavia, sem as formalidades de contratos como já ocorria com os norte-americanos, essas transações eram feitas no fiado, ou seja, na mera confiança. Essa instituição foi tão forte que até hoje está presente em alguns estabelecimentos Brasil afora.


A região do Recôncavo Baiano (que engloba Salvador e outras cidades ao redor), entre o fim do século XVII e início do século XIX, tinha uma população de 100.000 habitantes, aproximadamente (sendo 30.000 em Salvador). Segundo registros (que na época não eram tantos), haviam:

  • 110 engenhos de açúcar em funcionamento;

  • 450 grandes comerciantes em atividade;

  • 2 mil plantadores de cana autônomos e 2 mil plantadores de tabaco;



O solo na região era considerável de boa qualidade para o cultivo do vegetal e os engenhos tinham um certo componente empreendedorial: no início, frequentemente os senhores tinham de arrendar ou vender partes de suas terras para fazendeiros independentes plantarem a cana, porque nem toda a cana plantada pelo próprio dono conseguia suprir a demanda do processamento. Isso permitiu a distribuição de custos e riscos do empreendimento (como dito, sem subsídios governamentais), inclusive dos fenômenos naturais como secas (sim, elas já existiam). Entretanto, eram comuns casos de abuso de trabalhadores que ficavam endividados por anos e que tinham sempre de suprir uma parte da produção para o dono da terra, em inúmeros arranjos, inclusive contratuais.


Embora com este título, os senhores de engenho também tinham outras atividades econômicas. Para lidar com as incertezas sobre o mercado de açúcar, sujeitos também às condições meteorológicas, era comum que os proprietários fossem investir na compra de escravos (incluindo navios), assim como em pecuária, tabaco, imóveis e comércio. No caso de migrantes sem nenhum tipo de sangue nobre ou prestígio, era mais usual que eles entrassem no comércio primeiro, para depois irem aos negócios de engenho de açúcar.


Possuir um engenho de cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) era também uma posição de prestígio, mas, mesmo assim, era comum que os proprietários buscassem também por títulos de nobreza, assim como cargos na administração colonial e direitos de senhorio sobre terras no interior (lembre-se, o regime de terras era diferente naquele período).


A jornada de trabalho no cultivo da Saccharum era exaustiva, mesmo para os padrões da época. Os trabalhos eram feitos até aos domingos. Como faltava mão de obra (inclusive escravizada), os turnos então acabavam ficando até maiores. Além desse labor nada agradável para os negros escravizados (e que certamente influenciou na violenta Revolução Haitiana), havia uma cadeia de mão de obra livre, indo de caixeiros, feitores, mestres, banqueiros, carpinteiros, marinheiros, ferreiros, entre outras profissões. Em relação a América Espanhola, a Portuguesa possuía uma economia mais complexa, apesar da escassez monetária.


Visto como uma terra de oportunidades, assim descrevia Olinda, o contemporâneo Gabriel Soares de Sousa (no século XVI), na obra "Tratado Descriptivo do Brasil em 1587" (página 35):


"É tão poderosa esta capitania que há nela mais de cem homens que têm de mil até cinco mil cruzados de renda, e alguns de oito, dez mil cruzados"

Quem também comenta sobre, com estimativas, é Celso Furtado, em "A Formação Econômica do Brasil" (páginas 43 - 44):


"O valor total do açúcar exportado teria alcançado uns 2,5 milhões de libras. Se se admite que a renda líquida gerada na Colônia pela atividade açucareira correspondia a 60% deste monte, e que essa atividade contribuía com três quartas partes da renda total gerada, esta última deveria ser de aproximadamente 2 milhões de libras. Tendo em conta que a população européia não seria superior a 30.000 habitantes, torna-se evidente que a pequena Colônia açucareira era excepcionalmente rica. [...] Se bem que as comparações de longo prazo de rendas monetárias - com base no valor do ouro - careçam quase totalmente de expressão real, a título de curiosidade indicamos que a renda per capita (da população de origem européia), na passagem do século XVI para o XVII, corresponde a cerca de 350 dólares de hoje [1958]. Essa renda per capita estava evidentemente muito acima da que prevalecia na Europa nessa época, e em nenhuma outra época de sua história - nem mesmo no auge da produção do ouro - o Brasil logrou recuperar este nível."


Não obstante a informalidade presente nos negócios brasileiros, instrumentos legais já existiam, o que também mostra que já naquele tempo havia, por exemplo, casos de senhores de engenho e outros endividados sob moratória tomando ações judiciais de seus credores, com penhora de escravos, lotes de terra e demais componentes das fazendas. Dependendo do caso, as conexões pessoais com importantes famílias da região jogavam favoravelmente para os credores.


Além disso, havia inúmeros pequenos empreendedores de outras indústrias, havendo também transportadores, estivadores, artesãos autônomos e muito mais. Diferentemente do que era pressuposto, no setor agropecuário, predominava a pequena propriedade, assim como nos outros setores econômicos.


Como o esperado, a região teve uma parcela considerável de migrantes. Neste caso, a primeira onda se compôs de alguns nobres portugueses, assim como de muitos artesãos, agricultores, comerciantes e marinheiros. A parte norte do Reino de Portugal era a principal região de origem. Naquele período, eram chamados de reinóis. A segunda onda se deu pela vinda de africanos escravizados. A quantidade era tamanha que, nesse período de tráfico de escravos, apenas a Bahia recebeu 1,2 milhão de africanos, ou 12,5 % do total que as Américas receberam.


Esse arranjo durou por certo tempo, até que a descoberta de ouro (no século XVII) fez com que o governo metropolitano aumentasse de poder (como de praxe). A fiscalização tributária aumentou, assim como a carga tributária. Isso fez com que a quantidade de impostos coletados aumentasse consideravelmente para a Coroa. Como a Lei de Parkinson está aí, o governo aumentou junto os seus gastos.


Apesar disso, a economia brasileira conseguiu crescer em todo o século XVIII, mesmo nas décadas finais do século, quando houve queda nas exportações para o Reino, em parte por conta da diminuição nas remessas de ouro para a metrópole. No último ano do século (1800), o Brasil tinha uma população de aproximados 2,5 milhões, enquanto Portugal tinha 2,75 milhões.


O mercado interno manteve o seu dinamismo e a vida continuou. Embora a escravidão tenha sido um flagelo presente até em pequenos proprietários (ou seja, não era apenas em grandes latifúndios), grande parte da economia estava composta de empreendedores individuais (seriam os "MEIs" daqueles tempos?) e trabalhadores livres, sem cativos.


Esse arranjo permitiu que houvesse mais liberdade de empreendimento do que a metrópole e em pelo menos parte do Ocidente (neste caso, a Europa), o que certamente chocou muito com as descobertas historiográficas recentes, que sempre tratavam a América portuguesa apenas como uma dualidade de economia de subsistência e uma economia exportadora.


As câmaras municipais também tinham bastante poder naqueles tempos. Conforme afirma Rae Jean Dell Flory, em sua tese de doutorado de 1978 intitulada "Bahian society in the mid-colonial period: The sugar planters, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725":


"A Câmara de Salvador desempenhava as diversas funções de órgãos semelhantes em todo o mundo ibérico. A câmara cultivava e arrecadava impostos locais, regulava os preços de mercadorias e serviços, licenciava vendedores e comerciantes, mantinha a cadeia e supervisionava as melhorias públicas. A mesma organização apoiava a guarnição da cidade por um tempo, organizava festivais públicos e era responsável pela limpeza pública e pelo policiamento noturno das paróquias urbanas e suburbanas. Embora esses serviços de rotina fossem importantes por si só, a função mais abrangente da Câmara era fornecer um fórum para os cidadãos locais debaterem recomendações políticas, apresentarem queixas e formularem propostas para apresentar ao governador e aos funcionários da coroa em Lisboa. [...] Foi a Câmara Municipal que, por meio de seu contato próximo com o governador e de seu direito de correspondência direta com a coroa, obteve legislação protetiva para os produtores de açúcar: controles sobre a construção de engenhos no interior, proteção limitada contra execução hipotecária e avaliação justa do pagamento em espécie."


Nas vilas portuguesas, em contraste, os poderes locais eram bem menores. Normalmente, uma pequena fiscalização do comércio, algumas normas de construção, policiamento das ruas e algumas instâncias judiciárias. Isso é também corroborado por Jorge Caldeira onde, "[...] os dirigentes da vila brasileira recebiam, por falta de uma autoridade maior, uma série de delegações: distribuir terras, cuidar da Justiça, legislar de maneira ampla sobre o comércio - e até mesmo autorizar guerra contra os índios. E assim foi por muito tempo: onde não havia autoridade superior, a Câmara decidia sobre qualquer assunto." (A nação mercantilista, página 101)


Conforme foram se passando as décadas, o tabaco foi crescendo de interesse pelos produtores na região baiana, visto como uma fonte complementar de renda. Descoberto no século XVI pelos europeus ao chegar à América (embora já conhecido pelos nativos americanos), o produto virou uma febre para os mercados europeu e africano. Na Bahia durante o século XVIII, muitos agricultores se empolgaram e converteram cultivos alimentares como mandioca pelo fumo. Da mesma forma, o tabaco também se tornou uma moeda de troca, para também adquirir mão de obra, inclusive os escravos africanos.


Em uma época sem fertilizantes químicos, o gado bovino (gênero Bos) fornecia esterco como adubo para plantações de tabaco, além de usos como tração animal, carne e couro. Houve casos documentados de bois que fugiam dos locais originais, invadindo e destruindo plantações ao redor, o que ocasionou conflitos. Por este motivo, posteriormente as autoridades reais exigiram que o gado fosse cercado.


Como vantagem em relação ao cultivo de cana, o tabaco (gênero Nicotiana) requeria menos investimento e também um período menor de crescimento, permitindo que houvesse duas colheitas num ano. Além disso, os cultivadores teriam menor necessidade de terceirizar parte de sua produção, que é o que costumava ocorrer com o cultivo da cana-de-açúcar, que exigia instalações mais complexas, fazendo com que comumente os plantadores de cana enviassem a matéria-prima para os donos dos engenhos que processavam em produtos mais elaborados e de maior valor agregado.


Embora normalmente os produtos finais de menor qualidade fossem destinados à África e os melhores para a Europa, na prática era comum o contrabando do fumo de melhor qualidade para o continente africano, porque era também possível obter maiores lucros. No esquema, eram também envolvidos agentes alfandegários corruptos.



A gente se vê por aí...


Esta é a primeira parte deste artigo, onde falamos um pouco da complexidade deste Brasil de onde viemos.


Na próxima parte, iremos falar dos demais aspectos econômicos na colônia, até chegarmos ao século XIX, quando o panorama sofre mudanças importantes.


Nos vemos na próxima!



Imagem de capa: "Primeira Missa no Brasil" (1859 - 1861), pintura de Victor Meirelles. Domínio público.

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