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Revolta da Vacina (1904)

Felipe Lange


Diante do retorno da vacinação obrigatória ao tema de discussão no Brasil (e de imposição também), lembrei-me da chamada Revolta da Vacina.


Muito provavelmente você deve ter visto esse assunto em algum momento da sua vida. Não me lembro se foi algum professor que falou sobre isso em alguma aula ou se eu simplesmente encontrei esse assunto em algum livro didático de História.


De todo modo, nesse texto irei falar não apenas sobre a revolta em si, mas alguns de seus prelúdios.



Os precedentes


Após o golpe em 15 de novembro de 1889, o novo governo enfrentou turbulências políticas e econômicas, com a legitimidade sempre sendo colocada sob xeque com revoltas espalhadas por todo o País (até o fim da República Velha, foram vinte e três revoltas, incluindo a da vacina).


"Municipal Theater of Rio de Janeiro", foto de Marc Ferrez, onde é mostrada a Avenida Rio Branco, uma das avenidas planejadas pelo prefeito Pereira Passos. Foto de 1909. Domínio público / Acervo do Instituto Moreira Salles.



O Rio de Janeiro era a cidade mais importante do país à época, não apenas por ser a capital federal, mas por ser o principal centro econômico, recebendo imigrantes e ex-escravos aos montes. A Isabel do Brasil, com a Lei Áurea, chegou a prometer aos libertos de que haveria lotes de terras para eles, o que foi simplesmente ignorado pelos republicanos após o golpe. Consequentemente, massas de pessoas perderam uma oportunidade de ascensão econômica, tendo de migrar para as cidades.


No Rio estava a segunda bolsa de valores brasileira criada. Contrastando com o refinamento de suas avenidas que tentavam imitar as belíssimas cidades francesas daqueles tempos, havia muitos cortiços e problemas sérios de saneamento básico, assim como várias doenças que eram graves à época, tais como a varíola. Muitos foram os escritores da literatura brasileira que denunciavam isso, como no livro "O Cortiço", do autor Aluizio Azevedo, de 1890.


Na capital estava o seu principal porto à época (posto que hoje é ocupado pelo Porto de Santos), por onde fluía a maior pauta exportadora no período: o café.


Indicado pelo presidente à época, o prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, começou a fazer as polêmicas reformas urbanas.



Planejamento central


Inspirado em sua vida de estudos na França, o sr. Pereira, na prefeitura do Distrito Federal, decidiu elaborar uma reforma urbana para deixar a capital mais parecida à Paris, tentando eliminar os casarões que pudessem remeter o passado colonial do Rio de Janeiro.


O prefeito estava contaminado também por ideologias positivistas e higienistas que queriam dar à capital um ar "de cidade civilizada e limpa", o que seria feito com coisas tais como alargamento de avenidas e criação de edifícios novos do nada.


Para concretizar isso, o prefeito simplesmente mandou demolir inúmeros casarões e cortiços, além de proibir a presença de ambulantes, o que acabou expulsando a população mais pobre para regiões mais afastadas da cidade, incluindo os protótipos das favelas, com habitações nos morros (e que pioraria décadas depois). As ordens de despejo ocorriam via decretos, sem nenhum processo judicial. Como o esperado, o valor oferecido aos antigos proprietários pelas desapropriações era ínfimo.


As novas residências, não surpreendentemente, tinham aluguéis mais caros e acabavam ficando às elites. Uma verdadeira segregação.


Chamada de "bota-abaixo", a política foi alvo de muitas charges e criou uma atmosfera de insatisfação popular.


Demolição noturna, feita na rua São José. Foto tirada pela revista "O Malho", página 17 da edição 96 de 1904.



Charge que satiriza tanto as demolições quanto a censura pelo Supremo Tribunal. Da revista "O Malho", página 26 da edição 96 de 1904.



Outro exemplo de charge satirizando a política da prefeitura do Rio de Janeiro. Da revista "O Malho", página 26 da edição 89 de 1904.




A vacinação obrigatória e o sanitarismo


A obrigatoriedade da vacina contra a varíola (doença causada pelos agentes Variola sp.) já existia em 1837 para crianças e, em 1846, para adultos. Entretanto, tratando-se de Brasil e de sua tradição da "lei que não pega" (para o bem e para o mal), as leis não tiveram muitos efeitos. Vacinação compulsória existiu em alguns países europeus décadas antes, também.


Então, o primeiro passo para a obrigatoriedade foi a criação do decreto Nº 1.151, de 5 de janeiro de 1904, o qual originou inúmeras regulações sanitárias no Distrito Federal e que criou o Código Sanitário. Tal decreto dispôs de regulações do exercício da Medicina e farmácia até coisas como regulações sanitaristas em domicílios e, em caso de descumprimento, aquele domicílio ou seria demolido ou teria de ser reformado. Como consequência, muitas pessoas perderam as suas residências ante o autoritarismo das regulações sanitárias, o que também provocou muitas charges e críticas em jornais de época.


Oswaldo Cruz, entretanto, era o personagem principal na luta pela obrigatoriedade da vacina, que havia sido nomeado diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública pelo próprio presidente Rodrigues Alves. O senador de Alagoas, Manuel José Duarte, havia apresentado o projeto de lei ao Congresso. Esse projeto se tornaria lei em 31 de outubro de 1904 (após brigas entre a pequena oposição e a maioria pró-governo), a chamada lei nº 1.261, de 31 de outubro de 1904. A obrigatoriedade da vacina era para todos os militares, para obter empregos no funcionalismo (e para os atuais funcionários do governo), casamento, escolas, demais empregos e viagens. A vacinação compulsória incluía de recém-nascidos a idosos, com multas pesadas.


Era um verdadeiro aparato regulatório medonho (ver aqui, à partir da página 95), que assusta até os mais autoritários nos dias atuais.


A obrigatoriedade recebeu oposição até de médicos como o Soares Rodrigues, dizendo também de que as interdições e desinfecções de casas são um atentado à propriedade alheia. O senador Lauro Sodré (que fundou a Liga Contra a Vacina Obrigatória) e outros políticos positivistas também se mostraram contrários à imposição. Rui Barbosa, ainda vivo à época, foi outro exemplo de crítico do autoritarismo vacinal. Apesar de naquela época já haver alguma confiança em vacinas, a maior queixa era quanto à sua forma compulsória.


Capa da "Revista da Semana", edição 229, ano V.



Mesmo com quase metade da população do Rio sendo analfabeta e os jornais terem sido os únicos meios de comunicação, a publicação da lei no dia 9 de novembro pelo jornal "A Noticia" repercutiu e causou fúria entre a população da cidade. Diferente dos dias atuais, muitos meios de imprensa eram contra a obrigatoriedade da vacina.



Começaram os conflitos (e mais charges)


No dia 10 de novembro, grandes ajuntamentos surgiram no centro da cidade, na Rua do Ouvidor, na Praça Tiradentes e no Largo de São Francisco de Paula. Vários oradores instigavam a revolta e a desobediência contra o decreto, o que acabou provocando a prisão de vários deles.


Mesmo com a polícia agindo para proibir quaisquer reuniões públicas e protestos, o povo resistia jogando pedras e com vaias.


A Liga Contra a Vacina Obrigatória chegou a organizar um comício para desafiar as autoridades, mas com a ausência de seus participantes, quem discursou foram as próprias pessoas ali, de maneira espontânea. Os policiais tentam efetuar as prisões, mas sofreram uma forte reação popular, sofrendo vaias e pedradas. O governo reagiu enviando unidades de cavalaria para enfrentar a briga.


Foram vários dias de confrontos, trocas de tiros, erguimento de barricadas em certos pontos da cidade... uma ala dos militares (florianistas) também se aproveitou da baderna e tentou dar um golpe de estado, o que ficou conhecida como "A revolta da Escola Militar da Praia Vermelha", feita por um grupo de oficiais e estudantes militares. O próprio senador Lauro Sodré estava envolvido. Em meio à baderna imprevista causada pela revolta, o golpe acabou dando errado. Esse setor era contrário aos rumos políticos que o Brasil estava tomando, saindo da República da Espada e indo para as oligarquias locais.


Milhares de pessoas então marcharam em direção ao Palácio do Catete (sede do governo federal), o que era fácil já que a sede ficava no meio do povo, diferente do que ocorre hoje com Brasília. Com uma forte guarda militar, a multidão passaria a gritar palavras de ordem contra a vacinação obrigatória e contra a polícia, voltando ao centro da cidade posteriormente.


Charge da revista "O Malho", página 7 da edição 107. Aqui é satirizada a obrigatoriedade da vacina contra a varíola.



Veículos foram derrubados, calçamentos e postes de iluminação pública sofreram avarias, além de ter ocorrido furto de armas das delegacias invadidas, também se armando de dinamites e querosene. Os próprios lojistas acabavam colaborando e fornecendo armamento. Os bairros populares, como Saúde e Gamboa, eram impenetráveis pelas tropas.


O governo federal entrou em pânico, solicitando auxílio do Exército e da Marinha, mesmo assim não tendo sido suficiente, a ponto de ter que chamar unidades do Exército das regiões limítrofes fluminense, paulista e mineiras. Ainda insuficiente, teve de armar o corpo de Bombeiros para dar suporte. Sem capacidade de deter, ainda foi ordenado o bombardeio de bairros e regiões costeiras através de navios de guerra e, por último, foi chamada a Guarda Nacional.


Charge da revista "O Malho", página 14 da edição 111. Praticamente previu como seria a revolta. A expressão "Guerra Vaccino-Obrigateza" é em referência à Guerra Russo-Japonesa, que estava ocorrendo naquele mesmo período.



Não é redundante repetir: o cenário continuava uma verdadeira guerra, com vários distúrbios em diversos pontos da cidade. Linhas telefônicas foram cortadas, impedindo comunicação entre as autoridades. Carros funerários não conseguiam recolher os corpos, pois poderiam ser assaltados, tendo de receber uma forte escolta militar para fazer o recolhimento.


Chegou-se a pensar na possibilidade de o Rodrigues Alves fugir, o que acabou sendo recusado pelo próprio.


Esse trecho abaixo sintetiza parte do que foi a revolta, do Jornal do Comércio:


"Naquela mesma madrugada em que se consumava por forma tão desastrosa o motim da Praia Vermelha, já se reiniciavam, com dobrada violência, os choques sangrentos entre a turba agitada e os contingentes da força policial e do Exército que por toda a parte se moviam em operações arriscadas. O tropel da cavalaria em cargas violentas e o fragor dos tiroteios iam-se tornando familiares ao ouvido. O mesmo espetáculo desolador do sangue correndo, tombando seguidamente mortos e feridos. A força, que

tentava aproximar-se dos vários redutos, recuava com frequência sob saraivadas de projetis de toda a natureza: balas, garrafas, latas vazias, pedras, pedaços de pau. Naquele dia uma nova arma entrava em ação, para aumentar ainda mais o terror dominante: começavam a explodir bombas de dinamite em vários pontos da cidade."



Apesar da pauta anti obrigatoriedade, prédios comerciais sem relação nenhuma foram também depredados.


Às pressas, o Congresso votou pelo estado de sítio por 30 dias no Distrito Federal e na comarca de Niterói, além de ter suspendido a obrigatoriedade da vacina, tendo ocorrido no dia 16 de novembro de 1904 (uma quarta-feira).


Gradativamente, a revolta ia sendo amenizada e, apesar do fim da obrigatoriedade da vacina, o governo começou a responder: deteve os militares acusados de rebelião, os alunos da Escola da Praia Vermelha foram exilados para regiões fronteiriças e posteriormente desligados do Exército, líderes civis presos e processados em tribunais e com perseguição e prisão de vários populares. Centenas de pessoas foram presas e muitas foram deportadas para o Acre em navios-prisão.


A cidade ficou destruída por completo, lotada de cadáveres e com manchas de sangue, cuja descrição em detalhes é impossível de ser feita neste artigo.



O que veio depois


Embora a vacina tenha continuado como facultativa, a política do "bota-abaixo" continuava com as suas arbitrariedades, tendo tido em seu histórico centenas de edifícios demolidos, sempre palco de matérias em jornais.


O escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (conhecido como Lima Barreto), denunciava a truculência estatal e as detenções ilógicas de pessoas que estavam nas ruas, tais como mendigos. Essas eram umas das inúmeras vítimas do planejamento central sanitarista de Rodrigues Alves, passando a ser moradores de rua.


Os problemas de infraestrutura permaneciam. As queixas vinham até sobre os materiais utilizados para se fazer os calçamentos novos nas avenidas cariocas, não obstante a alta tributação de 25 % sobre os restantes proprietários de imóveis na cidade, alegadamente para custear essas reformas. Inundações eram uma outra pauta de reclamação.



Lições


Embora com o caráter autoritário de se obrigar a vacinação, Oswaldo Cruz inegavelmente contribuiu para os conhecimentos acerca da febre amarela (transmitida pelo Aedes aegypti), além do desenvolvimento de vacinas contra a peste bubônica (causada pela bactéria Yersinia pestis). A varíola seria erradicada somente em 1971.


Vacinação é uma das maiores inovações humanas, responsável pela melhora nas condições sanitárias e no aumento da expectativa de vida.


A revolta da vacina, entretanto, foi uma reação popular contra a tirania sanitarista mista com fortes emoções e desconfianças acerca das autoridades, ainda que dentro da rebelião tenha havido também episódios de violência contra pessoas inocentes e abusos (por isso eu enfatizo de que sou contrário à revoluções e rebeliões).


É possível ser pró-vacinas e ser contrário à sua obrigatoriedade.


A liberdade é algo valioso demais para se abrir mão, sob qualquer pretexto.



 

Referências:


[1] Rio de Janeiro (Cidade). Secretaria Especial de Comunicação Social. 1904 - Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio / Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. – A Secretaria, 2006. 120 p.: il.– (Cadernos da Comunicação. Série Memória) ISSN 1676-5508. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101424/memoria16.pdf. Acesso em: 17 jan. 2022.

[2] FREITAS PINTO SILVA, Lívia. O povo no imaginário dos letrados: as representações dos setores populares nas páginas da revista O Malho (1904-1908). Orientador: Prof.ª Dr.ª Claúdia Maria Ribeiro Viscardi. 2014. 203 p. Dissertação de mestrado (Mestrado em História) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2014. Disponível em: https://docplayer.com.br/41772484-Livia-freitas-pinto-silva-o-povo-no-imaginario-dos-letrados-as-representacoes-dos-setores-populares-nas-paginas-da-revista-o-malho.html. Acesso em: 17 jan. 2022.

[3] A Revolta da Vacina, mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Brasiliense, 1984; Scipione, 1993; Editora UNESP, 2018. Disponível em: https://portalconservador.com/livros/Nicolau-Sevcenko-A-Revolta-da-Vacina.pdf. Acesso em 17 jan. 2022.

 

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