Parte 1: Da Grande Depressão até a primeira crise do petróleo
Felipe Lange
Semanas atrás foi feito um vídeo falando parcialmente sobre isso (falando que tem relação com uma iminente recessão), mas confesso a vocês de que não fiquei convencido o bastante. Não é uma mera birra minha (nem um ataque ao canal), mesmo porque eu recomendo que vocês vejam o canal do qual o vídeo foi publicado - sou inscrito no canal Ideias Radicais desde 2015, confiram que o canal é muito bom -. Apenas me sinto na obrigação de adicionar detalhes sobre o que há por trás de toda essa cortina.
Agora voltando ao caso, fosse exclusivamente isso, por que as demais fabricantes não fizeram o mesmo ainda? Toyota, Honda, Hyundai e Nissan não estão cortando sua linha de carros, mesmo tendo fábricas no país. Pelo menos não ainda, talvez eles cortem depois da publicação do artigo.
A Honda importa o Civic hatch do Reino Unido, algo que surpreende visto que, ao contrário do mercado europeu, o mercado americano sempre preferiu sedãs à hatchbacks (não se via um Civic hatchback desde 2005, quando era vendido como Si, um hatchback três-portas). A décima segunda geração do Corolla também possui versão hatch para esse mercado. Inclusive eu sempre vejo um estacionado, em meu caminho quase diário para as aulas de Inglês (na Flórida).
No caso das atuações da Ford no Brasil, esse comentário explica em resumo o que está por trás disso tudo. Ok, mas ela está encerrando também o modelo Fiesta de sexta geração, que por sinal já está defasado, e esse vídeo nos mostra o motivo. Uma outra razão pelo fechamento está no excesso de processos trabalhistas e, visto que o Fiesta estava em vendas decrescentes (vendendo menos até que um C4 Cactus, mais caro e de uma marca menos popular), nada mais lógico do que desistir de fabricar em uma região historicamente sindicalizada (lembrem-se de que foi lá que nasceu o Lula como sindicalista).
Mas voltemos aos EUA. O interessante disso tudo é que as raízes desse fechamento vem da época de pré-adolescência de meu avô. Mas acalme-se, meu avô não estava passando sua pré-adolescência tentando entender como funciona o motor do Ford Model T.
Após a crise de 1929, Herbert Hoover e Franklin Roosevelt causariam estragos gigantescos e que aprofundariam ainda mais a depressão. Pelo bem do tema do artigo, deixemos os detalhes da Crise de 29 para os demais artigos já disponibilizados pelo Instituto Mises Brasil. Mas eu já lhes adianto de que ambos foram rivais à altura de Getúlio Vargas, este mais uma cria do intervencionismo e do fascismo.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as coisas começaram a mudar. A dívida do governo aumentou de maneira gigantesca (o gráfico abaixo irá mostrar em mais detalhes), algo naturalmente esperado pois não apenas as despesas aumentam severamente durante uma guerra mas também isso é usado pelo próprio estado, como algo como desculpa para expandir o seu próprio poder (i.e., gastos).
Em 1945, após a morte de Roosevelt, quem assumiria a presidência seria o então vice Harry Truman. Ele então teve um bom senso e começou um severo corte de despesas, apesar de ser do Partido Democrata. Como diz esse artigo:
"O país é os EUA e o período é de 1945-1950. Tal período é (praticamente) um teste científico de uma hipótese keynesiana. Não obstante os repetidos alertas de vários economistas convencionais de que cortar gastos ao fim da Segunda Guerra Mundial traria de volta a Grande Depressão, o Congresso americano reduziu dramaticamente os gastos governamentais entre 1945 e 1950.
Os gastos do governo federal caíram de US$ 106.9 bilhões em 1945 para US$ 44,8 bilhões em 1950. Os gastos com defesa sofreram o maior corte de todos, caindo de US$ 93,7 bilhões em 1945 para apenas US$ 24,2 bilhões em 1950. Em apenas 5 anos, os gastos do governo caíram (em porcentagem do PIB) de 45% em 1945 para apenas 15% em 1950, e o déficit orçamentário anual do governo federal caiu de US$ 53,7 bilhões em 1945 para apenas US$ 1,3 bilhão em 1950. "
A dívida chegou ao pico de 119% do PIB, em 1946, uma verdadeira pornografia fiscal. Isso começa a mudar a partir dos anos seguintes, como o gráfico revela abaixo (as áreas cinzas são recessões):
Dívida bruta em relação ao PIB
Interessante constatar que não importava o presidente e a ideologia, eles foram continuando com a redução da dívida governamental com relação ao PIB. Décadas depois um outro democrata faria algo parecido por aqui.
O orçamento do governo foi arrumado (embora longe de ser perfeito), como mostra esse gráfico que vai de 1948 até 1974:
Orçamento do governo em relação ao PIB
Note como os déficits nem chegavam a 3% do PIB.
Eu só me desculpo pelas pequenas diferenças entre os anos de início de cada gráfico. Infelizmente o ano menos recente para o gráfico acima é 1948. E não foi por falta de honestidade minha. Vocês vão ter que reclamar com os burocratas americanos.
Em conjunto com essa redução real das despesas, a renda média real das famílias aumentou, assim como a produtividade, conforme os gráficos abaixo:
O gráfico da produtividade, que vai de 1950 até 1974:
O da renda média vai de 1953 até 1974 (bom, as datas estão na imagem):
Depois as tarifas de importação continuariam o seu declínio (que iniciou por volta de 1934, com o Trade Agreement Act), felizmente acabando com a soviética tarifa Smoot-Hawley.
Por que correlacionar todos os dados? Quando o governo reduz seus gastos, isso significa que ele está consumindo menos recursos que, estes sendo escassos, serão alocados de maneira mais eficiente pelos indivíduos através do mercado. Quando existe o gasto estatal, aquele dinheiro que poderia ser usado para investimentos produtivos será então, por consequência, utilizado para financiar a burocracia estatal.
Quando ele controla o seu orçamento, ele não apenas deixa mais dinheiro a ser investido de maneira produtiva por empreendedores, mas também diminui a sua propensão a aumentar impostos - algo que o estado tentará justificar se ele perder o controle das contas -, o que torna os investimentos de longo prazo mais plausíveis, aqueles que demandam uma maior previsibilidade, o que aqui no caso são investimentos em indústria de automóveis. Investimentos de longo prazo desse tipo levam anos para gerarem retorno (isso se conseguirem gerar, o que nem sempre acontece), além de exigirem de milhões até bilhões de dólares, então é óbvio que o investidor não vai querer perder tamanha quantia, em um eventual cenário onde o governo comece a aumentar impostos e regulações.
Com o aumento da produtividade por uso de máquinas e bens de capital melhores (com a redução das tarifas, as importações de eventuais insumos ficaram mais baratas), os aumentos de salários puderam ser feitos, de forma que o padrão de vida também aumentou.
Outro fator importante é que, após a Segunda Guerra Mundial, foi feito o acordo de Bretton Woods, o qual irei falar somente posteriormente. Não se esqueçam, ok?
Em 1950 os EUA era o país mais rico do mundo em termos de PIB per capita. O gráfico abaixo mostra os países que estavam no topo:
Dez países mais ricos do mundo em termos de PIB per capita
Essa sensação real de prosperidade também alterou até nas taxas de natalidade (conhecida como baby boom), já que as famílias agora estavam fora de um período de guerra (o que sempre acarreta custos econômicos, sociais e psicológicos enormes) e, agora mais prósperas, então poderiam fornecer uma melhor qualidade de vida para criar seus filhos.
Com tudo isso, era esperado que as Big Three (as três principais fabricantes americanas, Chrysler, Ford e General Motors) se expandiriam. Toda essa fartura ainda era somada aos fatos:
- O mercado de petróleo é relativamente desregulado e os preços dos combustíveis eram baixos, apesar do país não ser autossuficiente em petróleo;
- Além das ruas serem mais largas, os americanos possuem maior espaço para seus lares. Como a infraestrutura é recente comparada à outras partes do mundo (como a Europa), então já foi adaptada para lidar com automóveis, ao contrário da Europa, onde já haviam cidades de séculos e séculos de idade (e o transporte coletivo é usualmente melhor que o americano). Se o estado desregulasse as ruas e estradas, certamente os congestionamentos acabariam (tanto nos EUA quanto na Europa), mas esse é um assunto para outro artigo. Eu cheguei a pegar congestionamentos em rodovias que ligam à Miami, mas, comparado com o que peguei em São Paulo, é uma maravilha. Ter um carro virou parte da cultura americana, não por gostar de carros como um entusiasta, mas como um meio de vida e de independência, além de um meio de transporte para a família. A partir de 1930 mais da metade dos lares americanos já possuía um carro;
Um dos problemas de se ter fartura é que ela pode te acomodar. Mas você pode ser que não se acomode e se torne independente aos 16 anos, mesmo tendo nascido numa família que tem um motorista para dirigir o Rolls-Royce. Os EUA não foram bombardeados e destruídos como a Europa e Japão após a Segunda Guerra (o Brasil também não, mas isso pode ficar para um outro potencial artigo). E essas dificuldades severas impuseram uma realidade distinta nos carros. Os italianos tiveram de motorizar com o Fiat 500 - apesar de, em 1950, a Itália estar entre os 20 países mais ricos do mundo -, um modesto carro com motor dois-cilindros. Os japoneses eram pouco mais ricos que os brasileiros nesse período, e sempre tiveram um problema de espaço físico mais escasso, além de muitas regiões ainda ser inabitáveis (por serem muito montanhosas).
Agora, voltando um pouco, em 1933, foi feito o Buy American Act, uma legislação que privilegiava a compra de produtos domésticos (incluindo carros), quando feita por agências governamentais. O fato de se vender algum carro para alguma agência estatal já é provida de distorções econômicas pois, como dito anteriormente, o estado é por natureza um péssimo realocador de recursos escassos e, nesse caso, agora haverá disputas políticas para se vender para essas agências (sempre se lembre dos escândalos de corrupção que estouraram e ainda irão estourar no Brasil), já que essas agências não obtêm suas receitas no mercado por meio de trocas voluntárias, e sim de maneira compulsória e garantida, através do recolhimento de impostos. De certa forma então começaria os subsídios para veículos de fabricantes domésticas.
Naquela década de 50, tínhamos como as principais fabricantes no mercado de automóveis americano: American Motors Corporation, General Motors, Chrysler e Ford.
Detroit (em Michigan) talvez tenha sido um dos melhores exemplos do desenvolvimento dessa indústria pujante nesse tempo. Imagine essa cidade como sendo São Paulo em algum universo paralelo, onde nenhum político e burocrata brasileiro atrapalhasse. Como afirma Peter Schiff em seu artigo:
"Na primeira metade do século XX, Detroit oferecia empregos industriais para aproximadamente 200.000 trabalhadores. O efervescente mercado de trabalho fez com que a população da cidade crescesse para 1,8 milhão de pessoas até a década de 1950. E os empregos não vieram de programas governamentais ou de "investimentos" públicos em educação e programas de treinamento; eles foram criados pela vitalidade do capitalismo americano, pela visão estratégica e voltada para o longo prazo de industrialistas, pela forte ética do trabalho da população, e pela relativa ausência de interferência do governo e dos sindicatos. (As três grandes fabricantes de automóveis — GM, Ford e Chrysler — só começariam a lidar com o poderoso sindicato United Auto Workers em 1941).
Qualquer um que já teve o prazer de encontrar um carro americano clássico, como um Oldsmobile 8 Convesível de 1934 ou um Chrysler Town & Country de 1941, é capaz de entender por que Detroit prosperou da forma como prosperou. Não apenas estes carros eram impressionantes obras de engenharia e de perícia profissional, como também eram surpreendentemente acessíveis para vários americanos de classe média. A riqueza gerada pelos grandes fabricantes destes automóveis, bem como pela variedade de pequenos fabricantes que lhes forneciam peças e serviços, fluía para todas as classes de pessoas em Detroit, permitindo à cidade construir imponentes prédios e espaços cívicos, estabelecer instituições artísticas de nível internacional, e contribuir enormemente para as realizações culturais do país. "
E para se ter a ideia da grandiosidade e da fartura, vejam só:
- A General Motors tinha como divisões: Chevrolet, Cadillac, Buick, Pontiac e Oldsmobile;
- A Chrysler, além dela própria, tinha ainda Dodge e Plymouth;
- A Ford tinha também Lincoln e Mercury e;
- Demais outras marcas americanas com menor relevância;
Haviam outras marcas, mas elas não tinham tanta fatia quanto as fabricantes domésticas. A Mercedes-Benz, por exemplo, chegou por volta de 1952 por aqui por importação independente de alguns veículos, tendo se estabelecido oficialmente em 1965.
Um bom exemplo dessa década foi o Cadillac Eldorado. Lançado em 1953, era o carro topo-de-linha da divisão de luxo da GM. Um carro com motor 5,4-litros V8, de 210 cv (potência bruta). Para se ter ideia da extravagância e do luxo desse carro, ele já tinha câmbio automático e poderia vir também com vidros elétricos e ar-condicionado. Aliás, mesmo nessa década, esses itens não eram difíceis de serem encontrados nos carros americanos. Pesava mais de 2 toneladas e o seu comprimento chegava a absurdos 5,6 metros (no Brasil um Corolla tem por volta de 4,62 metros). O Cadillac Série 70 de mesma época chegava a 6 metros!
Esses carros eram realmente superlativos e extravagantes. Esse carro que está na foto de abertura é um Cadillac Eldorado 1953.
Os carros americanos desse período (pelo menos até os da década de 90) são hoje conhecidos como "Land yachts" (no Português ficam algo como "barcas"), por causa do porte e do rodar focado em conforto. O americano médio não queria carro para circuitos, diversão ou algo do tipo. Ele só queria um carro confortável e com boa disponibilidade de torque em baixa rotação, algo que era possível nesses grandes motores. Hoje isso ainda existe, mas falarei posteriormente mais sobre. Como o combustível era abundante, então não havia nenhuma preocupação com consumo.
Para se ter ideia da exigência, o primeiro Corvette, lançado também em 1953, não satisfez os americanos de princípio pela falta de um motor V8 (havia apenas o seis-cilindros).
Até meados da década de 70 as coisas estavam indo relativamente bem, com vários lançamentos, novos carros, novas opções, até que...
Subsídios, sindicatos e afins
Na década de 30, um sindicato poderosíssimo iria surgir: o United Automobile Workers, sindicato que representa trabalhadores industriais, inclusive os de indústrias automotivas (nascido em Detroit). Como todo sindicato que se preze, eles passaram a pressionar por benefícios crescentes (lembre-se da fartura na qual os americanos estavam vivendo) as fabricantes americanas, incluindo aumentos salariais, entre outros benefícios. É óbvio que, em algum momento, as fabricantes não conseguiriam sustentar todas essas benesses, mesmo porque a Contabilidade e a Matemática não se importam com os seus sentimentos e desejos. Quanto mais rico e produtivo você fica, mais o estado vai querer a sua parte. Essa é a velha e amaldiçoada economia mista, que assola a raça humana nos dias de hoje.
Para piorar a situação, a cidade foi contagiada, durante décadas, por inúmeros governos completamente irresponsáveis fiscalmente, onde os gastos subiram de maneira descontrolada, pilhando de maneira crescente a economia da cidade (recomendo assistirem esse vídeo para saberem mais sobre).
As fabricantes americanas, além de terem sofrido com esse problema, ficaram acomodadas e basicamente nunca pensaram que um dia aquelas barcas V8 teriam sua demanda afetada. O problema era também cultural, já que o conceito "bigger is better" continuava predominando. Ao longo dessas décadas, os impostos e as regulações foram também só aumentando. Não havia aquele apreço pela eficiência, que ocorria em outras partes do mundo tais como por exemplo o Japão (sobre o qual falarei na segunda parte desse artigo). Nesse período uma barreira protecionista também surgiria: o Chicken Tax (imposto do frango, em Inglês), imposta em 1964 pelo Lyndon Johnson.
Ele fez isso em retaliação às tarifas de importação erguidas pela Alemanha Ocidental e França (lembre-se que, além da Alemanha ter sido repartida, Nikita já havia construído o Muro de Berlim) sobre o frango americano. A ameaça para a raça humana (obviamente para os produtores domésticos na Europa, que queriam uma boquinha mercantilista) estava no fato de europeus poderem comprar frango barato dos americanos. Lyndon deveria saber que o livre comércio, mesmo que adotado de forma unilateral, gera benefícios.
Essa tarifa basicamente impunha um imposto de 25% sobre veículos comerciais leves estrangeiros (que segundo a classificação americana possuem capacidade de carga de até 1815 kg). Basicamente é como se você fosse taxado em importar uma Mitsubishi L200 da Tailândia, uma Hilux da Argentina, entre outras picapes e veículos comerciais.
Ford Transit Connect é um exemplo de veículo que foi afetado pelo Chicken Tax. Este é importado da Espanha, na comunidade autônoma de Valência. Mas graças às brechas, hoje você vai ver alguns ajudando os americanos em vários aeroportos.
Você achou que esse circo dessa guerra comercial começou agora com Donald Trump? Pois é. Graças à essa geringonça, obviamente as importadoras achariam algumas brechas para poder importar esses veículos, de maneira heroica.
Em 1973 estouraria a primeira crise do petróleo. E outros problemas viriam junto. Fiquem ligados sobre essa verdadeira história que mistura comédia, terror e uma certa dose de bravura. Agora vamos à segunda parte!
Referências interessantes:
[1] "Levittown- The Imperfect Rise of the American Suburbs", por Crystal Galyean
[2] "The Bus Industry in the United States", falando sobre o mercado de ônibus nos EUA
[3] "Ending the Chicken War: The case for abolishing the 25 percent truck tariff", de Cato Institute.
[Nota do editor: Para quem não sabe o que está acontecendo, no ano passado a Ford anunciou que irá cortar parte de sua linha de veículos no mercado americano nos próximos anos. Discutiremos essa notícia em específico na segunda parte do artigo.]
ATENÇÃO! Este artigo não possui nenhum intuito publicitário, difamatório ou caluniador para com quaisquer pessoas físicas e/ou pessoas jurídicas e sim o principal objetivo de ser um artigo de Ciência Econômica e com elementos jornalísticos, além de refletir algumas opiniões do autor!
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