Felipe Lange

Desde que comecei a acompanhar o canal de Raul Juste Lores no YouTube (que além de ser um jornalista que entende muito de urbanismo e arquitetura, tem certo conhecimento de Ciência Econômica), fiquei pensando sobre justamente esse problema em tantas cidades brasileiras: o descaso para com o pedestre pagador de impostos.
Para um país cuja aquisição de automóveis está a cada dia mais distante com as regulações crescentes, desvalorização cambial e renda estagnada, os incentivos governamentais para produção local de veículos eletrificados são apenas mais uma repetição do mercantilismo brasileiro (cujos alvos agora são os interessantes carros chineses), com apologistas existentes desde antes da moda da substituição de importações. Assim como não funcionou para os carros luxuosos de marca alemã que foram produzidos há alguns anos (muito embora o caso do A3 tenha sido de saída de linha mesmo da terceira; a quarta já chegou), não há motivos para afirmar que dessa vez irá funcionar (parte do plano pode ser lida aqui também). Como de praxe, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social continua.
O álcool e o biodiesel
Com o fracasso do Pro-Álcool, os consumidores caíram fora do álcool, por variados motivos, incluindo-se o fato de que em muitas regiões a diferença de custo não compensa. Apesar disso (e com apoio de muitos políticos ditos "de direita"), agora há planos para se aumentar a já absurda proporção de 27 % para 30 % do álcool para a gasolina C. Como o nosso setor de combustíveis ainda é bastante regulado, não deveremos esperar redução alguma nos preços da gasolina misturada vendida nos postos. E o Brasil continua o caso do país cuja gasolina não serve para os outros veículos do Mercado Comum do Sul.
Para cada 1 litro de etanol anidro (o que é misturado obrigatoriamente à gasolina), são necessários 12,5 quilogramas de cana-de-açúcar. Já para o etanol hidratado (que é o vendido nos postos; detalhe que só no Brasil que vendem ele sem a mistura com gasolina, ao contrário de países como EUA e França), são 12 quilogramas.
Já para o biodiesel (que também é adicionado compulsoriamente ao Diesel comercializado nos postos), cuja grande parte da produção usa a soja como matéria-prima, requer vários processos bem complexos.
Não precisa pensar muito para deduzir sobre o quanto de terra que é desmatada só para produzir produtos para os quais há uma reserva de mercado garantida. Como nem todo veículo é adaptado para essas misturas, há ainda o custo de peças de reposição. E nessa, mais recursos escassos sendo alocados para isso.
Por exemplo, em 1995 - 1996, cujo percentual de álcool à gasolina era de 22 %, a área plantada de cana-de-açúcar era de 4.184.599 hectares. Já em 2006, com o percentual de 20 %, a área aumentou para 5.679.833 hectares (1). Para 2017, quando o percentual já estava em 27 % (que é o que está até a data da publicação deste artigo), a área foi para 9.127.644 hectares. Ou seja, a taxa de aumento de área colhida aumentou consideravelmente (2).
O percentual de biodiesel no Diesel, que começou com tímidos 2 % em 2008, hoje está em 14 %, assustando até países mais ambientalistas europeus. Principal matéria-prima, a soja tinha uma área colhida de 9.240.301 hectares em 1995 - 1996, passando para 17.882.969 hectares já em 2006 (ainda antes da adição compulsória). Em 2017, com percentual de biodiesel em 8 %, a área colhida fora de 30.722.657 hectares (3) (a maior frente parlamentar do país defende abertamente o aumento do percentual).
A área colhida só não foi maior porque, nessas últimas décadas, a produtividade aumentou, tanto pelos organismos geneticamente modificados quanto por maior uso de maquinário agrícola e defensivos agrícolas.
Além da questão ambiental, o biodiesel é bem mais caro de produzir que o Diesel, o que encarece também o combustível comercializado nos postos. Tudo isso vai acabar chegando a você, consumidor. Caminhoneiros, também sufocados pelos altos custos de vida, muitas vezes apenas podendo ter um caminhão de mais de 30 anos, são os mais atingidos por essa mistura compulsória.
As paisagens nas rodovias também ficam mais pobres, porque áreas que poderiam ser utilizadas para o cultivo de gêneros alimentícios como arroz e feijão, base da alimentação brasileira, são trocadas por cana-de-açúcar, devido à demanda artificial via decreto. É o que afirmou Marcia Montanari, em matéria de 2021:
"Observamos um aumento das áreas de produção de commodities agrícolas e uma redução gradativa de área plantada de arroz, de feijão e outras culturas alimentares. Para ter ideia, aqui [Mato Grosso] tem regiões que utilizam de 95 a 98% do seu território agricultável para a produção de soja, milho, cana e algodão. Resta pouca área disponível para produção de arroz, feijão, tubérculos, vegetais e frutas"
Como se não bastasse, em estados como São Paulo, a bizarrice produzida pela Lei n° 18.065, de 18 de dezembro de 2024 prevê isenção do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores de carros híbridos somente se eles forem flexíveis em combustível (a jabuticaba não existe só no Brasil, mas a forçação de barra com álcool até nos elétricos sim). Ou seja, só beneficiarão alguns veículos, além de sequer incluir veículos elétricos (muito embora o impacto ambiental deles seja questionável, o que iremos abordar logo adiante). Com a alta dos preços dos veículos tanto usados quanto novos, a quantidade de impostos coletados pelo governo aumenta, já que o absurdo imposto é em termos percentuais.
Enquanto essas terras poderiam ser utilizadas para alimentar milhões de brasileiros famintos, elas alimentam corporativistas que voam para Brasília ao primeiro sinal de corte de subsídios (ou que irão pedir ainda mais subsídios). Muito humanitário e ambientalmente correto, não é? Para piorar a encrenca, a desvalorização cambial incentiva mais degradação ambiental.
As baterias
Componentes que já estão na rotina de bilhões de pessoas ao redor do mundo, o caso dos veículos elétricos é bastante interessante.
Embora em tese eles produzam menos gás carbônico e com menos componentes mecânicos, o todo deles não é exatamente verde. Como o Brasil também embarcou em sua nova geração de nacional-desenvolvimentismo, baterias para veículos eletrificados serão também feitas no País, conforme previsto no "Plano de Ação para a Neoindustrialização 2024 - 2026".
Como nos telefones celulares, as baterias íon-lítio vão perdendo eficiência com o tempo. E como estamos no Brasil, onde até uma revisão extensa num velho Fiat Uno pesa bastante para os mais pobres, espere um preço bem camarada e uma bateria nova de um carro: entre R$ 5 mil e R$ 20 mil para híbridos e por volta de R$ 60 mil para um totalmente elétrico.
Se hoje a reciclagem das baterias comuns de veículos à combustão é um processo mais fácil (assim como no descarte correto dos derivados de petróleo como óleos lubrificantes), a reciclagem de baterias íon-lítio tão pesadas quanto as dos veículos automotores eletrificados é mais complicada e ainda não está disponível em todos os pontos do Brasil.
A encrenca também está em seus componentes: níquel, lítio, cobalto, cobre e os metais de terras raras neodímio e disprósio.
O níquel, cujo maior exportador mundial é a Indonésia, tem uma extração bastante predatória: além de provocar um considerável desmatamento nas florestas tropicais do país, está até prejudicando as comunidades locais, uma básica violação do direito de propriedade dessas pessoas (exatamente o pontuado por Murray Rothbard).
Além de ser nome para uma música do Evanescence, o lítio é outro mineral de extração intensiva. Hoje encontrado principalmente no Triángulo del Litio (Argentina, Bolívia e Chile), o processo é intensivo em uso de água (quase 2 milhões de litros de água por tonelada de lítio) e com grande potencial de poluir lençóis freáticos e o solo.
Os congoleses hoje respondem por 70 % da produção do cobalto (cujo termo em Inglês originou dois modelos distintos da marca Chevrolet). Além de poluidor, o cobalto traz riscos à saúde humana por longas exposições, já que uma parte considerável dos mineradores não utiliza nenhum tipo de proteção. Para piorar, dezenas de milhares de crianças também trabalham nessas minas. Num país sem liberdade econômica e que espanta os investidores, esse trabalho é uma das poucas alternativas existentes para muitos trabalhadores.
Já para o cobre, a situação ambiental também muda pouca coisa. A sua produção é criticada por ambientalistas no Chile, hoje o maior produtor do mundo. Embora o Joseph Biden tenha cancelado dois arrendamentos de mineração de cobre nos EUA com apoio dos ambientalistas e democratas, eles não ligam se isso acontecer em outros países. No caso brasileiro, hoje o estado do Pará é o maior produtor do país, onde se situa a Floresta Amazônica...
Por fim, tanto o neodímio quanto o disprósio também causam respeitáveis impactos no meio ambiente.
Pedestres
De longe, o meio de locomoção menos impactante para o meio ambiente é a caminhada e, em segundo, a bicicleta. Como nós, Homo sapiens sapiens, somos seres sociais, estarmos próximos de outras pessoas faz parte de nossa sobrevivência e bem-estar. Todavia, não é isso que temos visto em muitos municípios Brasil afora.
Até mesmo as instituições de ensino superior sofrem do mesmo problema. Onde eu frequentei, por exemplo (em Muzambinho, Minas Gerais), além de ser distante da cidade e com aclives enormes, sem transporte coletivo, muitos alunos ou vão de vans, ou aqueles mais endinheirados acabam tendo que ter um carro próprio ou uma motocicleta. Uns mais corajosos vão de bicicleta (e com riscos severos em chuvas). Uma ida a pé do centro para o primeiro prédio da instituição de ensino superior pode levar por volta de uma hora (e vai tomar bastante sol na cara), além de ainda ter que tomar cuidado com muitas partes urbanas sem espaço para pedestres.
Você provavelmente conhece alguém que já se acidentou nas nossas calçadas (ou mesmo você próprio quem já se acidentou), sejam particulares ou não. Ao caminhar, vossa mercê precisa olhar sempre para o chão, para desviar de buracos, fezes de cachorro, sujeira, obstáculos e muito mais. Até mesmo as rampas de acesso para carros frequentemente são feitas de qualquer jeito, com uma alta chance de raspar alguma parte do pobre veículo.
Discussões que deveriam ser básicas para qualquer candidato à prefeitura, foram deixadas de lado em favor de pautas que viralizam em redes sociais (você conhece a expressão "deputag"?). Enquanto isso, os grupos mais vulneráveis sofrem todos os dias Brasil afora.
Este vídeo abaixo mostra um exemplo do que deveria ser aplicado em inúmeros municípios brasileiros:
No caso do estado de São Paulo, o rodoviarismo ganhou força ainda com Washington Luís, tanto como governador do estado (1920 - 1924) quanto como presidente da República (1926 - 1930). De certa forma, até os dias atuais isso persiste, muito embora as ruas continuem esburacadas e infestadas de lombadas e valetas (espero que as lombadas não virem moda para os pobres ciclistas), assim como temos veículos cada vez mais inacessíveis à grande massa populacional. Querem incentivar o uso de veículos e desincentivar o uso em simultâneo?

Consequentemente, daí em diante, as poucas ferrovias que restaram foram sucateadas e, embora o Marco das Ferrovias tenha sido sancionado no fim de 2021, vai demorar muitos anos para essa situação começar a mudar de fato.
Para quem assistiu ao grande filme "Cidade de Deus", viu que bem ali no início do longa, fizeram um bairro basicamente no meio do nada. Legado desastroso da ditadura militar (que criou o Banco Nacional de Habitação), o governo passou a subsidiar a construção de imóveis longe de tudo (hoje com programas como o "Programa Minha Casa Minha Vida"), com os moradores tendo que usar carro próprio para basicamente tudo. Enquanto isso, os imóveis ficaram mais caros, muitas famílias ficaram endividadas, com as construtoras escolhidas pelo programa faturando alto. Como essas novas habitações são distantes dos centros urbanos, os custos para se levar energia elétrica e saneamento básico são maiores.

Além disso tudo, há inúmeras regulações sobre o uso do espaço urbano. Obras imobiliárias que ficaram na história paulistana pela funcionalidade e praticidade seriam proibidas hoje pelo arcabouço legislativo existente na cidade. Temos também as leis de zoneamento e planos diretores, que restringem sobre como as habitações devem ser construídas e onde podem ser construídas. No caso americano, é normal que em muitas cidades haja zonas exclusivamente residenciais e outras comerciais, coisas presentes nos filmes da Sessão da Tarde. Prefeituras Brasil afora tentam importar essa ideia, que não é exatamente funcional e nem ambientalmente saudável. Mesmo se ignorarmos a questão da poluição, coisas como longas distâncias de viagem e congestionamentos seriam evitadas se os habitantes pudessem trabalhar bem perto da casa onde reside.
Com o ambiente hostil para os pedestres, a procura por formas alternativas de transporte aumenta. Como todas essas formas são pesadamente reguladas - ônibus, transporte ferroviário, serviços de metrô e mais - esses serviços, cuja oferta já é artificialmente restrita pelo estado, fica mais saturado. Por esta razão, a demanda por automóveis aumenta, principalmente nas cidades menores, nas quais há uma menor economia de escala, menos viáveis para formas alternativas de transporte. E aí vem a outra encrenca: o estado, por ser ineficiente, não consegue administrar ruas e rodovias decentes. Nem precisa de estatísticas: basta ver como estão as rodovias depois de uma chuvarada típica de verão (ou pesquisar no seu mecanismo de pesquisa de preferência). Para piorar, a inflação distorce a contabilidade e os custos dos materiais usados, afetando até as estradas privadas por regime de concessão. Entra ano e sai ano, enquanto o setor privado oferece veículos com mais tecnologias de bordo, o estado continua sendo incapaz de fazer uma rua ou rodovia plana.
Ao punir os pedestres, não deixa de ter outro efeito: o turismo. Embora o Brasil tenha recebido um recorde de 6,65 milhões de turistas estrangeiros em 2024 e seja líder na América do Sul (pouco acima da Argentina), ainda há espaço para melhorar. Afinal, está longe de países como China (65,7 milhões), México (45 milhões) e Tailândia (39,8 milhões). Isso é especialmente se levando em conta que é um país de dimensões continentais e cuja riqueza em biodiversidade é inigualável. Ainda, há patrimônios culturais em cidades como Ouro Preto e Tiradentes.
Mais pedestres
Está na hora de o Brasil repensar o seu rodoviarismo e os seus subsídios. Mesmo dentro do País, há bons exemplos (infelizmente os subsídios são a nível federal e não podem ser modificados pelo poder dos municípios), com boas práticas também indo dos vizinhos latino-americanos a potências turísticas como Espanha, França e México. Além de diminuir a insegurança com a presença de mais pessoas circulando, otimiza a realocação de recursos escassos (como tempo) e aumenta a qualidade de vida e bem-estar.
Embora promissor, ainda é inviável a produção de um veículo totalmente movido a álcool. Pelo próprio processo de mercado, coisas como painéis solares ficaram mais baratas ao longo do tempo, sem precisar de subsídios. Isso também afetou os veículos elétricos e híbridos. Essas fontes alternativas de energia, que são promissoras, não deveriam ser vendidas via subsídios ou obrigatoriedades. Subsídios distorcem a estrutura produtiva e provocam desperdício de recursos escassos (inclusive na degradação ambiental) e apenas beneficiam certos grupos econômicos, em detrimento da população.
Quando é que essas pautas irão ser pensadas com mais profundidade?
Notas e referências
(1) IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996/2006 (página 144).
(2) IBGE, Censos Agropecuários 1950/2017 (página 88).
(3) : IBGE, Censos Agropecuários 1970/2017 (página 85).
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